4.5 estrelas fantasia

Resenha: The Mirror Empire, Kameron Hurley

22:33neo

The Worldbreaker Saga: The Mirror Empire | Empire Ascendant | +?
Kameron Hurley
Angry Robot
★★★★½
Nas vésperas de um evento catastrófico recorrente conhecido por extinguir nações e remodelar continentes, uma órfã problemático escapa da morte e da escravidão para descobrir seu próprio passado sangrento... Enquanto um mundo vai para a guerra contra si mesmo.
No reino congelado de Saiduan, invasores de outro reino estão dizimando cidades inteiras, deixando para trás nada além de cinzas e ruínas.
À medida que a estrela negra do cataclismo surge, um governante ilegítimo tem a tarefa de manter unido um país fraturado pela guerra civil, um jovem lutador precoce é convidado a trair sua família e uma general meio-Dhai tem que decidir entre a erradicação do povo de seu pai e a lealdade para com sua Imperatriz alienígena.
Através de alianças tensas e traições devastadoras, os Dhai e seus aliados tentam se manter contra uma força aparentemente imparável enquanto nações inimigas se preparam para um encontro de mundos tão antigo quanto o próprio universo.
O final, um mundo se erguerá - e muitos perecerão.

Antes de dizer o que achei de The Mirror Empire, devo informar que tenho a mania de seguir autores de livros que não li ainda no Twitter, e que geralmente vou movendo suas obras pra cima (ou pra baixo) na minha lista de leitura a depender da impressão que eles me causam. Apressei-me para ler The Mirror Empire justamente porque a Hurley conseguiu colocá-lo lá em cima na lista e o principal motivo foi simples: o fato de que ela sabia sobre e parecia disposta a desafiar o que hoje considero o maior defeito da fantasia atual, que, é claro, é a insistência do gênero em apagar mulheres, pessoas de cor e pessoas LGBTQ de suas histórias.


Eu já sabia do império matriarcal onde homens são tratados com seres inferiores antes de ler a primeira página de The Mirror Empire. Já sabia também que uma das mulheres desse império, Zezili, abusaria de seu marido, Anavha. E, é claro, já sabia que a quantidade de mulheres seria maior do que a de homens, coisa que eu não me lembro de ter lido em nenhum outro livro de fantasia. Isso me deixou empolgada, claro, e não, não porque quero ver homens como seres inferiores e/ou sendo abusados, mas sim porque um livro assim abriria espaço para uma melhor representação de mulheres. Ou melhor, uma representação melhor dos diversos tipos de mulher e não apenas a boa e má, mas mulheres como personagens complexos cheios de defeitos e qualidades.

Havia também uma preocupação com a possibilidade dos aspectos mais diferentes do livro serem usados apenas para encobrir uma história fraca, possibilidade essa levantada por resenhas que li antes de começar The Mirror Empire, mas como essas resenhas eram em sua esmagadora maioria feita por homens héteros, cis e brancos, confesso que estava disposta a desconsiderá-las quanto a esse assunto. Porque sim, heterossexualidade não é a norma em The Mirror Empire. Sociedades binárias também não são, e como eu disse lá em cima, há mais mulheres do que homens e um desses homens se encontra em um relacionamento abusivo, ou seja, o lugar geralmente relegado apenas às mulheres. Não posso evitar pensar que boa parte das reclamações sobre a falta de personagens héteros e de homens venha de pessoas que pela primeira vez não estão lendo uma história que é exclusivamente sobre elas.

(Pior quando eles chegam, indignados, gritando, não tem pessoas héteros!!!! e só tem três homens com POV!! ou e tinha necessidade de colocar o Anavha sendo atacado sexualmente por uma mulher???, porque quem vem com essas reclamações geralmente é o mesmo tipo de gente que diz que reclamar de livros sem pessoas LBGTQ ou com poucas mulheres é querer controlar o processo criativo do autor. Coincidentemente são as mesmas pessoas que dizem que o estupro de Prince of Thorns não é nada demais, porque bem, as coisas eram assim na Idade Média!!!! Ignoremos o fato de que o que o Anavha sofre em The Mirror Empire é considerado comum e normal na sociedade em que ele vive, porque né, para essas pessoas só mulheres podem ser vítimas de violência sexual, mesmo que, na verdade, homens também sofram disso hoje em dia, quem dirá então na Idade Média. Ou que três POVs é muito mais do que 90% dos livros do gênero se importa em dar para mulheres.)

Mas continuando, eu não queria gostar de The Mirror Empire apenas por sua postura em relação a gênero e sexualidade. Não estou tão desesperada assim ainda, muito obrigada. Por isso que lendo as primeiras 60-80 páginas comecei a ficar decepcionada. A história não estava me prendendo. Eu já estava prestes a gritar estou tentando gostar de você, livro, faça sua parte!!, mas depois da página 100 a coisa ficou tão boa que foi difícil pra mim parar de ler. Mas vamos por partes.

The Mirror Empire é bem complexo. Estilo não-preste-atenção-e-se-ferre de complexidade. No mundo onde a história se passa (na maior parte do tempo, ao menos, já que há outros mundos), a magia vem de quatro satélites, Para, Tira, Sina e Oma, e os jistas (pessoas que podem usar magia) são divididos em parajistas, tirajistas, sinajistas e omajistas, de acordo, claro, com o satélite que lhes dá poder. Para, Tira e Sina possuem rotas previsíveis e ascendem e descendem do céu em um ritmo que dá para calcular. Oma, por outro lado, surge muito mais raramente, e sua ascensão significa apenas uma coisa: destruição.

Há mais de dois mil anos atrás, Oma ascendeu pela última vez e com ela chegou um cataclismo e uma guerra que moldou o mundo dos dias atuais. Agora, com Oma subindo aos céus mais uma vez, uma nova guerra está chegando. Dessa vez, porém, os invasores são de outro mundo, e de um mundo espelho, com os mesmos povos, pessoas e lugares que o mundo a ser invadido. No lar dos invasores, Oma já está nos céus e sua presença está fazendo o mundo inteiro definhar, e é por isso, é claro, que os invasores, o grande império Dhai, querem tanto escapar para o lado de cá. Problema sendo: os Dhai também estão presentes no mundo a ser invadido (mesmos povos, lembra?), mas os Dhai do lado de cá são pacifistas e odeiam a guerra. No passado eles já foram conquistadores, mas perderam feio em uma de suas campanhas e foram escravizados por vários séculos até conseguirem fugir e fundar um novo reino, onde é necessário até ter permissão na hora de tocar outra pessoa. Os Dhai do lado de lá, porém, nunca perderam, e isso os fez um povo extremamente numeroso e belicoso. Problema número 2 sendo: você só pode atravessar o portal entre os mundos se sua versão do mundo do outro lado estiver morta ou por algum motivo nunca ter nascido, o que quer dizer que os Dhai do lado de cá precisam ser exterminados antes que os Dhai do lado de lá possam passar e se salvar de seu mundo moribundo. Nem preciso dizer que isso dá uma confusão dos diabos, não é?

Além da história bastante criativa, outra coisa que fez eu gostar tanto de The Mirror Empire foi o o worldbuilding original, e não, não estou falando da parada de gênero/sexualidade lá de cima, mas sim dos aspectos mais físicos do(s) mundo(s). Em The Mirror Empire há árvores que caminham e comem carne humana, florestas venenosas, pessoas que andam por aí montando ursos ou cachorros gigantes, templos cujas paredes são vivas e canibalismo. Ok, o canibalismo me horrorizou de leve (eles - os Dhai - só comem seus mortos e não qualquer um que capturam, o que foi um alívio), mas o conjunto todo fez com que eu realmente me sentisse como se estivesse lendo uma história em um mundo completamente diferente. Nada contra os mundos medievais e coisa e tal (gosto de vários livros assim), mas acredito que o gênero precise de mais livros como The Mirror Empire. É bom mudar de vez em quando.

Quanto aos personagens, meu favorito foi o Ahkio (um dos três homens com POV, olha só!), mas todos foram bem construídos e cada um possui seus medos e motivações. Morri de pena do Anavha, quis estapear a Lilia algumas vezes e gostei da personalidade complexa da Zezili, apesar de não gostar dela como pessoa/personagem (o tanto de gente indefesa que ela mata + o jeito com que ela trata o Anavha = nope). Há vários outros personagens interessantes, com Ghrasia, Nasaka, Kirana, Roh e a misteriosa Imperatriz de Dorinah. Roh foi o que menos causou impressão em mim, mas até mesmo ele tem sua própria história. E o que é melhor: poucos personagens caem na divisão certinha de "do bem" ou "do mal". Zezili abusa de seu marido e mata inocentes, mas ama seu país e quer protegê-lo. Lilia quer cumprir a promessa que fez a sua mãe e quer encontrá-la, mas no caminho faz várias coisas que estão longe de serem consideradas certas. Nasaka parece querer o bem de seu filho e de seu reino, mas não se importa muito com as vidas que acabarão sendo tiradas no processo. Ahkio quer manter seu povo como ele sempre foi - pacífico e calmo -, mas a guerra talvez mude não só isso, mas também ele próprio. Enfim, a autora mexe muito com esse aspecto de cada personagem e até mesmo de todo um povo; afinal, os Dhai do lado de lá ainda são as mesmas pessoas que os Dhai do lado de cá, mas são completamente diferentes. Foi interessante ver como a cultura e o ambiente onde tal pessoa foi criada moldou sua personalidade.

O único defeito desse livro pra mim (e o que me impediu lhe dar 5 estrelas) é seu tamanho. Senti que os personagens poderiam ser bem mais desenvolvidos e que o final acabou de modo meio abrupto, o que foi meio intencional, mas ainda assim... Achei que faltou o bam! para encerrar bem a história, que ficou bem em aberto. Estilo cliffhanger mesmo. Um defeito menor, mas que eu acredito ter tirado um pouco da qualidade do livro. 

Por último, a escrita. Eu adorei o estilo da Hurley, que não é incrivelmente descritivo, mas que também não chega a ser raso e tem sua própria voz. Enfim, mal posso esperar para ler Empire Ascendant, o segundo volume da Worldbreaker Saga, que sai esse ano. 4.5 estrelas.

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6 comentários

  1. Nossa! Fiquei ainda mais interessada nesse livro.

    O seu comentário sobre os personagens me fez lembrar um pouco o que leio sobre os demais livros da série Malazan Book of the Fallen. Acho que vou gostar de The Mirror Empire.

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    1. O engraçado é que lembrei de Malazan enquanto o lia mesmo nunca tendo lido Malazan, mas só pelo que me falaram achei os dois mais ou menos o mesmo tipo de fantasia. Aliás, pretendo ler Malazan em breve também ^^

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  2. Esse livro parece valer a pena só pela criatividade com que esse mundo foi construído. O sistema de magia parece interessante e adorei essa história de "mundo espelho". Mas os personagens bem construídos e o enredo interessante contam muito também, assim como a narrativa. Ultimamente narrativas rasas demais têm me incomodado, às vezes parece que os autores estão narrando quando deveriam estar mostrando.

    Abraços!
    Sonhos, Imaginação & Fantasia

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    1. Tenho esse mesmo problema com os livros que ando lendo. Odeio quando os autores escolhem ficar falando e falando ao invés de narrar; acredito que tira muito da qualidade da narrativa.
      E a criatividade da Hurley foi o que me conquistou de início. Foi muito bom sair da mesmice e realmente aproveitar um mundo diferente e original.

      Abraço!

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  3. Me chamou a atenção só de vc ter dito que era um livro de fantasia sobre uma sociedade de mulheres. Eu quase consegui ouvir um "ufa" na minha cabeça e leria só pra dar um tempo em livros de fantasia em que repete o padrão chato q vc mencionou.
    Estou ansiosa (tomara que eu o consiga até o natal)
    o//

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    1. The Mirror Empire chama atenção em parte justamente por fugir dessa mesmice de sempre dos livros de fantasia atuais. Espero que você goste!

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