como não escrever um livro de fantasia
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Como não escrever um livro de fantasia II - a raça mary sue
18:38neo
OBS: Spoilers não tão graves para Eragon e Eldest nessa matéria.
Antes de tudo, devo dizer que falhei.
Não, eu não terminei de reler Eragon. Na verdade, desisti antes de chegar a metade porque estava simplesmente muito ruim. Felizmente, já li a série toda antes e me lembro de várias coisas, então esse "guia" pode continuar sem problemas.
Como já devem ter percebido, o post de hoje é sobre raças Mary Sues. Como disse na minha última matéria de dica de escrita, um personagem Mary Sue (ou Gary Stu para homens) é aquele personagem perfeito demais, que nunca comete erros e que aprende tudo mais rápido do que todo mundo e que todos ou adoram ou odeiam sem muito motivo. A raça Mary Sue segue o mesmo esquema, e assim como o personagem Mary Sue/Gary Stu serve para colocar o autor na história, a raça Mary Sue serve, principalmente, para expressar as crenças do autor como superiores às demais. E, é claro, é uma raça perfeita.
A raça Mary Sue é sempre mais veloz, mais forte, mais capaz de usar magia e mais inteligente. Até mesmo seus membros mais fracos são mais habilidosos que qualquer pessoa de outra raça. Sua cultura também é colocada em um pedestal; tudo o que eles produzem, não importa se música, literatura, arquitetura, etc, é vista como superior e como a unica certa, mesmo que de modo implícito. As pessoas da raça Mary Sue são tão perfeitas que elas provavelmente já superaram quaisquer males que atingiam as sociedades humanas/de outras raças, como o racismo e o sexismo, e seu código moral é tão estupendo que inveja, cobiça e egoísmo não fazem mais parte de suas vidas. O máximo de ruindade deles é a arrogância, e mesmo a arrogância deles acaba sendo justificada na narrativa porque, afinal, eles são melhores, lembra?
Apesar de aparentemente possuírem uma magia ou tecnologia mais avançada e de serem mais inteligentes, velozes e fortes, a raça Mary Sue raramente oprime as outras raças mais fracas simplesmente porque eles são tão superiores e tão certos que jamais cometeriam tamanha atrocidade. A raça Mary Sue também vive em harmonia com a natureza, e nunca causa nenhum mal a ninguém a não ser que seja necessário. O sistema de governo dos reinos da raça Mary Sue também são sempre os mais certos, e, como dito lá em cima, suas sociedades são pacíficas e sem conflitos.
Pessoas da raça Mary Sue também vivem por muito tempo ou são imortais. O amor deles também dura para sempre e eles raramente trocam de parceiro. Ou é o contrário: eles praticam o "amor livre", e por isso nunca há discórdia entre eles. E se um membro da raça Mary Sue se envolve em alguma discussão, ele está quase sempre certo. Na narrativa fica inclusive implícito que o modo de viver e/ou as opiniões da raça Mary Sue são o jeito de viver e/ou as opiniões certas. Isso, é claro, porque todo mundo da raça Mary Sue sempre concorda em tudo. Nunca há conflitos, lembra?
Bônus se algum membro de outra raça se tornar um da Mary Sue no decorrer da história. Esse seria a última (e mais eficaz) forma de "convertimento".
Se você reconheceu os elfos de praticamente qualquer livro nessa descrição, parabéns, você está certo!
Mas você não adora elfos? Sim, eu adoro. Sempre tento ler o maior número possível de livros com elfos, já que eles são minha raça preferida. Mas na maior parte do tempo os elfos que encontro são total raça Mary Sue. E eu acredito que isso acontece graças aos elfos mostrados em O Senhor dos Anéis, que parecem sim ser serem Mary Sues, mas quem leu O Silmarillion ou Contos Inacabados sabe: os elfos de Tolkien estão longe de serem santinhos.
Mas foi essa imagem de elfos perfeitos que se tornou viral, por assim dizer. Muitos autores a reproduziram sem pensar muito no assunto - entre eles Paolini.
Não sei se os elfos de Eragon expressam as crenças de Paolini, mas eles com certeza são vistos como superiores e seu modo de vida é sempre glorificado ou visto como certo. Eles são vegetarianos, ateus, incrivelmente habilidosos com magia e guerreiros estupendos. E quem leu Eldest sabe: Eragon passa por uma transformação e se torna uma mistura de humano e elfo, adquirindo assim todas as qualidades da raça élfica.
Os elfos de Eragon também sofrem de outro sintoma de raça Mary Sue: todo mundo pensa praticamente do mesmo jeito (sem discórdias de novo). Não há notícia quase alguma de elfos que comem carne ou que acreditam em deus(es), ou de elfos que não sejam excelentes em magia ou esgrima ou arquearia. Todos eles são perfeitos, e tudo o que eles produzem é superior. Eragon mesmo passa uma boa parte de Eldest abobalhado com as músicas e histórias élficas.
Uma raça Mary Sue é ruim porque, primeiro, ela não é real. Segundo, o level de identificação do leitor com essa raça será mínimo (para comprovar isso é só prestar atenção em quantas pessoas gostam de anões e quantas gostam dos elfos tradicionais. Anões ganham com toda certeza. Por quê? Bem, além da preferência pessoal de cada um, anões são muito mais "humanos" do que elfos, que chegam a ser divinos - e portanto distantes - de tão perfeitos).
Como não fazer uma raça Mary Sue então?
É só não a fazer perfeita. Uma raça sem qualquer tipo de preconceito ou conflito social é muito irrealística. Uma raça onde todo mundo pense do mesmo jeito? A mesma coisa. Dê complexidade à sua raça, e faça com que ela realmente pareça um grupo de pessoas semelhantes por motivos genéticos, e não por lavagem cerebral.
E lembre-se: raça é diferente de reino ou país. Humanos (na maior parte do tempo) conseguem reinos com culturas completamente diferentes, mas raças fantásticas são sempre iguais, não importa o reino onde vivem. Elas também merecem um tico de complexidade e diversidade para realmente parecerem reais.
Bem, esse é o post de hoje. Qualquer coisa é só deixar um comentário. Até!
*arte por asuka111
5 comentários
Entendo toda a ideia de que criações "perfeitas", sejam elas de personagens ou de raças, são relativamente boring e tornam ainda mais irreal uma literatura que já é naturalmente fantástica/de ficção. Mas ao mesmo tempo, para mim, se não existisse esse tipo de personagem/raça eu sentiria falta do idealismo que ele representa. É essa lavagem cerebral que às vezes faz com que personagens mais falhos e com uma pegada de anti-herói sejam ainda mais atrativos para o leitor. Faz com que a identificação com eles seja mais natural.
ResponderExcluirEu particularmente gosto muito dos elfos em geral mais pela questão física do que pelo código moral, por sua imortalidade, ou qualquer outro atributo de perfeição que tenham. Acho que a questão estética de seres "evoluídos", de se aproximarem de "anjos", de serem belos é o que mais me atrai. Daí você pode tirar que eu sou uma rendida aos padrões estéticos de beleza ocidental ditados pela sociedade-machista-capitalista-opressora, mas né... anos de terapia que não funcionaram... :P
Eu queria muito saber sua opinião sobre os elfos que Leonel Caldela criou em "O Código Élfico". Na verdade sobre o livro como um todo. Minha experiência com a história foi muito boa, e eu gostei bastante da forma como ele conduziu as raças élfica e humana ao longo do livro.
No mais, maravilhoso post, como sempre. ^.^
Essa ideia de elfos perfeitos foi o que me fez gostar da raça inicialmente, para falar a verdade. Tanto que passei a gostar dela após assistir LOTR, onde ela é representada como uma raça bela, superior e mais sábia. E sim, entendo perfeitamente essa parte do idealismo; às vezes sinto falta do aspecto mais "maravilhoso" dos elfos quando tentam "desperfeitizar" a raça, ou melhor, falta da ideia de, não sei, talvez reverência?, que os elfos mais clássicos geralmente induzem. Por isso tento equilibrar os dois lados com meus próprios elfos, mas é bem difícil :p
ExcluirO Código Élfico é um dos livros de fantasia brasileira que eu mais gosto. Escrevi até uma resenha dele, lá no tumblr do Chimeriane, mas nunca cheguei a postar aqui (agora que lembrei vou ver se faço isso em breve). Mas se tratando dos elfos, eu gostei do modo com que o autor os retratou. No início achei que aquela mistura de conspirações, ciência e magia não funcionaria ou não se encaixaria com os elfos, mas depois a coisa toda começou a fazer sentido e me agradou bastante. Caldela é um dos melhores escritores nacionais do gênero na minha opinião.
Obrigada! Fico feliz que tenha gostado ^-^
Caro amigo Neo.
ResponderExcluirA raça élfica consegue viver centenas de anos chegando alguns a atingir 1000 anos, portanto com tanto tempo de experiência, conhecimento e levando em conta que foram os primeiros seres a serem criados como não poderiam serem tão próximos da perfeição?!
Sei que essa característica pode parecer chato para alguns mas é assim que eles são. Apesar de ser raro conflito entre eles há conflito com outras raças como os anões, outras raças de elfos e os extintos valar.
Olá, Andre!
ExcluirBem, eu acho muito difícil para seres eternos se tornarem perfeitos nesse sentido (ou em qualquer sentido). Vampiros, por exemplo, também são imortais e estão sempre em conflito. Elfos não deveriam ser diferentes.
E, é claro, em várias histórias elfos não são imortais, apenas longevos (em Eragon, por exemplo, eles não são). Aí esse argumento acaba caindo por terra por completo, já que esses elfos às vezes sequer chegam aos 500 anos.
Em O Senhor dos Anéis há vários conflitos entre os elfos, contados principalmente em O Silmarillion, mas cada livro ou série segue sua própria mitologia. Em alguns os elfos não são sequer os primeiros seres a serem criados, apesar de isso ser sim comum. E o conflito com anões geralmente não passa de antipatia; raramente vemos elfos e anões que tenham guerreado entre si por muito tempo e que nutram ódio real uns pelos outros, já que eles ficam sempre apenas no "não nos damos bem" apesar de estarem do mesmo lado da guerra em 99% das vezes.
Oi. Tb odeio Mary Sues e Gary Stus exatamente por essa "perfeiçao irreal" que enche o saco! Graças aos deuses que no livro que estou escrevendo passa muiiiiito longe disso. Pra você ter noção até as personagens do tipo "Virgem Maria bela recatada do lar" tem seus momentos de deslizes, dificuldades e com alguns pensamentos meio que errados (uma delas não aceita / não apoia o proprio povo pelo sindrome do viralata!)
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