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Rant literário: Por que homens têm tanta dificuldade em escrever mulheres?

18:37neo


Podem me chamar de lenta, mas passei boa parte da minha vida - e ainda, boa parte da minha vida após começar a escrever - sem ter a mínima noção de que para homens era tão difícil escrever mulheres. Sei que não são todos, claro, mas é impressionante o número de escritores do sexo masculino que comenta o quão difícil é escrever uma personagem do sexo feminino, principalmente em gêneros como a fantasia e a ficção científica. É só dar uma olhada nas entrevistas de autores que tenham personagens femininas de relevância em suas histórias; boa parte delas vai incluir uma pergunta sobre a tal da dificuldade que homens sentem ao fazer tal coisa. Mas olhe para as entrevistas de autoras que têm personagens masculinos de importância em seus livros e, bem, raramente a pergunta equivalente é feita a elas.

Isso não quer dizer, é claro, que não existam mulheres que tenham dificuldade em escrever homens. Já encontrei várias, mas mesmo assim as dúvidas delas não eram as mesmas dos homens que tinham dificuldade em escrever mulheres. Enquanto elas se perguntavam, e se meu personagem masculino acabar muito sensível? eles se questionavam, e como diabos uma mulher pensa?

Dá pra perceber a diferença entre as duas perguntas, né? Pois bem, foi a partir daí que eu comecei a notar que havia alguma coisa de suspeita nessa discussão toda. Coincidentemente, isso aconteceu na mesma época que uma treta envolvendo o escritor Andrew Smith, autor de Grasshoper Jungle, aconteceu lá fora. Em uma entrevista, a seguinte pergunta foi feita a ele:

Q: On the flip side, it sometimes seems like there isn’t much of a way into your books for female readers. Where are all the women in your work? 

(Por outro lado, parece que não há muito espaço em seus livros para leitoras. Onde estão as mulheres em suas obras?)

A: I was raised in a family with four boys, and I absolutely did not know anything about girls at all. I have a daughter now; she’s 17. When she was born, that was the first girl I ever had in my life. I consider myself completely ignorant to all things woman and female. I’m trying to be better though.

(Eu fui criado em uma família com quatro garoto, e eu absolutamente não sabia nada sobre garotas. Eu tenho uma filha agora: ela tem 17 anos. Quando ela nasceu ela se tornou a primeira garota que eu tive na minha vida. Eu me considero completamente ignorante em todas as coisas envolvendo mulheres. Estou tentando melhorar, porém).

A resposta dele causou furor entre leitoras, escritoras e blogueiras. A principal questão levantada foi, basicamente, se garotas/mulheres eram assim tão estranhas, quase alienígenas, a homens/garotos que escrever uma personagem feminina sem ter algum parente desse gênero era assim tão difícil. Você pode ler um resumo da treta toda aqui, em inglês, inclusive alguns tweets sobre o assunto.

Fiquei um bom tempo com Andrew Smith e sua resposta na cabeça e, lendo alguns tweets, posts, etc, feitos por mulheres sobre essa confusão toda, comecei a entender porque para homens é tão bizarramente difícil escrever mulheres. Algum tempo antes outro acontecimento no mundo literário já tinha me dado a resposta, embora eu ainda não soubesse disso, óbvio.

Tudo começou quando a escritora Shannon Hale, autora de Princess Academy, fez um post intitulado No Boys Allowed: School visits as a woman writer, ou Não é permitido garotos: visitas escolares enquanto escritora. Nele (você pode lê-lo, em inglês, aqui), ela fala sobre como, de vez em quando, as escolas em que ela dá palestras sobre os livros dela ou sobre escrita não liberam os garotos, deixando que apenas as garotas a assistam. Segundo ela, o mesmo não acontece com os escritores homens que também dão palestras; para eles, garotos e garotas são liberados. No final de uma de suas palestras - essa com garotos e garotas - um menino ficou para trás para lhe pedir, completamente envergonhado, por uma cópia de seu livro - um livro sobre uma garota, e "pior", um livro sobre uma garota que era uma princesa.

Fica a pergunta: por que o menino se sentiu tão envergonhado a ponto de esperar que todos os seus colegas irem embora antes de pedir uma cópia do livro?

Hale fala um pouco sobre isso em seu texto:

I think most people reading this will agree that leaving the boys behind is wrong. And yet--when giving books to boys, how often do we offer ones that have girls as protagonists? (Princesses even!) And if we do, do we qualify it: "Even though it's about a girl, I think you'll like it." Even though. We're telling them subtly, if not explicitly, that books about girls aren't for them. Even if a boy would never, ever like any book about any girl (highly unlikely) if we don't at least offer some, we're reinforcing the ideology.

I heard it a hundred times with Hunger Games: "Boys, even though this is about a girl, you'll like it!" Even though. I never heard a single time, "Girls, even though Harry Potter is about a boy, you'll like it!"

Eu acho que a maioria das pessoas vai concordar que deixar os garotos pra trás é errado. E ainda, quando damos livros para garotos, com que frequência os oferecemos livros que têm garotas como protagonistas? (Princesas até!) E quando o fazemos, nós os qualificamos: "mesmo que seja sobre uma garota, eu acho que você vai gostar". Mesmo que seja. Nós os estamos dizendo sutilmente, se não explicitamente, que livros sobre garotas não são para eles. Mesmo que um garoto nunca fosse gostar de livro algum sobre uma garota (altamente improvável) se nós não tentamos oferecer alguns, estamos reforçando essa ideia.

Eu ouvi isso cem vezes com Jogos Vorazes: "garotos, mesmo que seja sobre uma garota, vocês vão gostar!" Mesmo que seja. Eu nunca ouvi, "garotas, mesmo que Harry Potter seja sobre um garoto, vocês vão gostar!"

E é aqui que, pra mim, está resposta para a pergunta que dá título a esse post: meninos são educados desde cedo a ver meninas como seres completamente diferentes deles, e isso resulta no e como diabos uma mulher pensa? na hora de escrever.

Meninas, por outro lado, não passam por isso. Como a escritora Phoebe North disse durante o caso de Andrew SmithThe thing I keep think about the Andrew Smith thing is that you can't be a woman and know nothing about men, ou, a coisa que eu continuo pensando sobre Andrew Smith é que você não pode ser uma mulher e não saber nada sobre homens.

Mulheres - ou pessoas criadas como mulheres - são criadas com o POV masculino dominando todos os modos de se contar história. Os livros que lemos na escola são, em sua maioria, escrito por homens sobre homens; os filmes que vemos no cinema estrelam espiões, guerreiros, etc, e já estamos com sorte se houver mais de uma mulher no elenco principal; séries e programas de TV também focam na narrativa masculina, e a feminina é muitas vezes representada apenas nos programas e séries para mulheres. Vale frisar também que não existe filme, livro ou série/programa para homens, mas existem os para mulheres. O ponto de vista masculino é visto como universal; o feminino é exclusivo das mulheres, e o homem que se interessar nele é ridicularizado - e essa é a razão do menino lá da palestra de Shannon Hale ter esperado seus colegas irem embora antes de pedir pelo livro. 

(Por exemplo, lá nos EUA/países que falam língua inglesa existem fiction - ficção - e women's fiction - ficção de mulher. Não há uma necessidade de men's fiction - ficção de homem - porque o POV dos homens é visto como interessante a todos e se torna apenas o fiction enquanto o das mulheres é visto como interessante apenas às próprias mulheres.) 

Assim, condicionados pela sociedade - e por sociedade aqui quero dizer mesmo família, amigos, conhecidos, professores, etc -, garotos crescem se afastando cada vez mais da narrativa, da experiência feminina. Se eles tentam se aproximar correm o risco de ter sua masculinidade (e às vezes até sexualidade) questionada e ridicularizada. Então eles se afastam mesmo e, quando adultos, às vezes nem sequer se arriscam a escrever mulheres justamente por terem essa ideia bizarra de que elas são intrinsecamente diferente deles. Spoiler: não são. Afinal, mulheres vêm escrevendo homens há zilênios sem muitos problemas. Com o conhecimento adquirido através de toda uma vida sendo exposta ao masculino, a maior parte delas senta para escrever um homem sem se desesperar. Mas o homem, privado da exposição ao feminino, não tem tanta sorte.

Quando Hale fez seu post, um outro escritor, Andrew Harwell, fez um em resposta intitulado I Was That Boy ou Eu Era Aquele Garoto, que você poder aqui em inglês. O trecho abaixo ilustra bem o que quero dizer (só a tradução porque é um tanto longo):

Flashback para a escola elementária. Eu já era um leitor ávido, devorando Goosebumps e Redwall e muitas outras séries "gênero neutro" que o vendedor de livros me indicava (eu coloco "gênero neutro" entre aspas porque obviamente aqueles livros eram de escritores homens). Minhas irmãs gostavam de Angelina Ballerina e The Babysitters Club, que me intrigavam, mas claramente não eram para mim. Os livros de Judy Blume iam para o quarto da minha irmã; os livros de Hardy Boys iam para o meu. Eu tenho certeza que os adultos da minha vida que fizeram essa bifurcação acontecer o fizeram querendo fazer o melhor. Eu sei que meus pais especificamente o fizeram porque não queriam que zombassem de mim caso eu gostasse de "coisas de menina". Essa é uma coisa sobre o patriarcalismo - ele sobrevive graças ao medo. (...)

Flash forward para o ensino médio, quando a garota em minha sala que era conhecida por ler tudo (sério - ela leu Anna Karenina com 13 anos) estava lendo um livro antes da aula que imediatamente me chamou a atenção. Havia uma garota na capa, iluminada por uma luz vermelha. Estava claro que essa luz era algum tipo de mágica. Era o segundo livro na série Daughters of the Moon e eu furtivamente perguntei a minha colega de classe se ela tinha os livros e se eu podia pegar o primeiro emprestado. Fiquei imediatamente viciado. Todo dia, eu passava pra ela o livro que eu tinha acabado de terminar e ela me passava o próximo. Eu lembro de ter defendido os livros para outro colega de classe que viu a troca acontecer. Eles são todos sobre batalhas mágicas, eu disse. Essas garotas são lutadoras! Violência! Qualquer outra coisa que garotos gostem! Eu não mencionei como os livros empurravam as linhas de gênero e sexualidade. Eu não mencionei Stanton, o sexy, mas torturado vilão. (...)

Meu ponto é que quando leio uma história como a de Shannon Hale, isso me lembra do quão sortudo eu fui de encontrar os livros que eu precisava na vida. Isso me lembra do pânico que eu sentia quando dava algum livro como os crossovers de Hardy Boys e Nancy Drew para minha mãe comprar, sabendo que se ela começasse a lê-los saberia instantaneamente que era um livro de romance, não para garotos. Isso me lembra que eu provavelmente não teria tido coragem o suficiente para esperar e perguntar a Shannon Hale por uma cópia de The Princess in Black, sabendo que até mesmo meus professores e treinadores estariam julgando aquela decisão. Isso me lembra do quão grato eu sou a aquela colega de classe que me passou Daughters of the Moon sem julgamento.

Ou seja, o menino que se interessar em qualquer coisa "de menina" está sempre sob o perigo de ser alvo de piadas, provocações e em alguns casos até de agressões. E sem ter contato algum com essas "coisas de menina" é muito difícil resistir à ideia de que mulheres e homens são fundamentalmente diferentes, tanto que até o modo de pensar de cada grupo é oposto, alienígena.

Mas homens e mulheres (e pessoas de outros gêneros) não são fundamentalmente diferentes. Claro que ser criado como mulher ou homem proporciona algumas diferenças sim, principalmente graças à sociedade machista em que vivemos, mas lá no fundo nossos sonhos, medos, desejos, etc, são extremamente parecidos. Por isso que lá no início, quando eu mal entendia essa dificuldade que os homens tinham em escrever mulheres, eu ficava tão surpresa com a situação toda. Não entrava na minha cabeça que homens realmente não sabiam como diabos uma mulher pensa. Afinal, como alguém que foi criada como uma mulher, eu nunca me perguntei como diabos um homem pensa. Não digo saber com toda certeza (não sou vidente e não sou um homem, então vamos com calma), mas homens, mulheres, pessoas de gêneros não-bináries, são, no fim das contas, humanos. O que pode ter de tão diferente na experiência humana? Eu não entendia.

Agora entendo mais.

Mas, para ser sincera, isso não faz dessa questão toda algo menos bizarro. Quando vejo posts e entrevistas de autores homens - autores homens que eu gosto! - onde eles dizem o quão difícil é escrever uma mulher eu quase tenho que me impedir de gritar mas como assim?? para a tela do laptop. Como vocês (provavelmente) sabem, sou agênero, não me identifico nem como homem e nem como mulher, e durante minha vida inteira sempre escrevi meus personagens mais me baseando em suas experiências de vida do que no gênero com que eles se identificam, e isso antes de descobrir que eu podia ser outra coisa que não homem ou mulher. O fato de boa parte dos meus personagens AMAB (aka registrado como homem ao nascer, já que um bom número deles é não binárie como eu porque sim) serem grayasexual, demisexual ou asexual sempre me fez encarar os posts que dizem que homens reparam em corpo primeiro enquanto mulheres notam os olhos com um tanto ceticismo, o que contribuiu para meu hábito de continuar ignorando qualquer coisa que diga mulheres agem assim! homens agem daquele jeito! Acredito que existam características comuns a cada gênero - em sua maioria moldadas pela sociedade mesmo - sempre vai ter muita, mas muita gente se desviando dessas "regras".

Então, pra mim, no fundo, meio que não importa. Personagens de qualquer gênero são, como eu disse, humanos (ou criaturas que emulam o ser humano) e tratá-los como tal antes de tudo é o que realmente faz a diferença em qualquer livro.

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6 comentários

  1. Sim, eu já vi em discussão de filmes e séries este questionamento de que coisas escritas por homens são "universais" enquanto que coisas feitas por mulheres são restritas a mulheres. Curiosamente, o "universal masculino" parece ter grande dificuldade de representar a outra metade da população...

    Como filha caçula com três irmãos mais velhos, fui muito influênciada por eles. Toda minha vida eu gostei de muitas coisas ditas como "masculinas" ou "de garotos", porém, NENHUMA vez fui questionada por minha família, amigos e colegas quanto aos meus gostos ou minha sexualidade (e eu sou héterosexual).

    Porém, tenho certeza que se um homem passar por uma experiência semelhante a minha, ele não terá a mesma sorte.

    Sinceramente, isso soa para mim como se a masculinidade fosse algo muito frágil que o homem tem que comprovar todo santo dia. Não sei dizer bem se está ocorrendo maiores discussões quanto a definição do masculino e da masculinidade, porém isso talves ajudaria a quebrar essa noção de que "ser homem" é algo tão frágil assim.

    E isso teria que correr em paralelo com a definição de que o que é feito por mulheres é apenas para mulheres também. Como disse, não sei se os homens estão discutindo sobre o que é ser homem (que ainda possui muita resistência por parte dos homens), mas acho que mudanças, mesmo que lentas, tem ocorrido. Está começando a aparecer em jogos, séries de tv, adulto e infantil, uma maior aparição de personagens femininas como personagens principais nas histórias, além de maior presença de personagens femininos em geral.

    Há ainda muito que ser feito, mas é interessante ver que alguns resultados estão aparecendo.

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    1. Tive uma experiência parecida: fui criada (em um sítio ainda por cima) com um irmão mais novo e um primo mais velho, e nunca fui muito feminina. Minha mãe reclamava de vez em quando, mas nada grave. Porém, bastava meu irmão demorar um pouquinho mais para se arrumar - ele sempre foi mais vaidoso do que eu - para começarem a chamá-lo de menina e coisas do tipo, e ele morria de vergonha (ainda morre).

      Na minha opinião, acho que mulheres têm mais liberdade para usar o "espaço masculino", por assim dizer, porque ser masculino/a não é visto como algo ruim. É só ver como mulheres passaram a ocupar profissões que antes pertenciam apenas aos homens ou começaram a vestir roupas que antes só homens podiam usar (como as calças) sem maiores problemas, mas até hoje homens que ocupam profissões vistas como profissões de mulheres são olhados como suspeita ou surpresa, e nem preciso falar das roupas de mulheres ou de maquiagem. Homem nenhum pode chegar perto disso sem ser ridicularizado ou sofrer algum tipo de violência.

      Ou seja, o homem sempre precisa provar sua masculinidade porque qualquer coisa além da masculinidade - a androgenia ou a feminilidade - é visto como o inferior. Se ele não for masculino, é gay, mulherzinha, viadinho, etc, então obviamente tem muita misoginia e homofobia nessa coisa toda. A única alternativa segura para eles é ser masculino e a todo instante eles precisam reafirmar que são 100% másculos pra deus e o mundo, o que deve ser pra lá de cansativo e, além disso, limitante.

      Hoje em dia vejo muita gente falando disso, chamando essa necessidade toda de afirmar e reafirmar a masculinidade como "masculinidade tóxica". É uma conversa interessante e que eu espero que mais homens tenham um dia, já que isso os afeta muito sem eles sequer perceberem.

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    2. Sim, eu tenho visto mais questionamentos quanto a "fragilidade masculina", o que seria um outro termo para "masculinidade tóxica" - essa necessidade de se provar o tempo todo que é homem. E sim, isso acaba tendo consequências quanto ao menor contato com coisas rotuladas de feminino (que acaba também referindo-se a aquilo que é inferior), o que resulta na maior dificuldade de escritores em escrever personagens femininos. Isso é realmente uma espiral bem destrutiva, muito mais ainda para aqueles que não se encaixam nesses parâmetros.

      Seu post tem gerado uma conversa legal no grupo do facebook "escritores ajudando outros escritores" e foi legal ver alguns homens comentando sobre suas dificuldades (ou não) e como eles lidam com isso.

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    3. Não participava do grupo, mas dei uma olhada na discussão e vi que está bem legal mesmo. É bom ver que o texto serviu para iniciar uma conversa sobre o assunto ^^

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  2. Os sujeitos são incapazes de fazer algo que todo escritor deveria saber fazer desde antes de começar a escrever um livro: PESQUISA

    Nada mais importa. Se um escritor quer saber como é uma mulher, faz pesquisa. Não tem desculpa.

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    1. Concordo completamente. O engraçado é que eles conseguem fazer pesquisa sobre tudo, mas sobre a mulher, com quem convivem diariamente, eles não se dão ao trabalho. E depois reclamam quando alguém diz que as personagens femininas que criaram não são bem escritas.

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