diversidade manifesto irradiativo

Manifesto Irradiativo e um rant sobre diversidade

22:24neo


Estou pra fazer esse post sobre o Manifesto Irradiativo desde que ele foi lançado há algumas semanas (meses?) atrás e até tinha o rascunho dele aqui no blog, mas resolvi apagar tudo e aproveitar o espaço para falar de algumas questões que sempre aparecerem quando falo de representatividade por aí. Mas vamos por partes.

O Manifesto Irradiativo foi criado pelos escritores Jim Anotsu e Alliah e, como o nome diz, defende a representação da diversidade na literatura especulativa nacional. Sempre falo da falta de diversidade dos livros gringos que leio, mas raramente me volto para as obras produzidas aqui, e confesso que isso acontece, antes de tudo, porque não leio muitos livros brasileiros (mea culpa, admito). Por outro lado, devo confessar também que sim, noto essa ausência, mas raramento falo sobre ela. Por quê?


Sendo bem sincera, eu meio que já me convenci de que, se a representação de diversidade dos livros mainstream lá de fora é trágica, a daqui se encontra pela hora da morte e respirando com ajuda de aparelhos e que por isso não há nada que eu posso fazer. É quase como se eu não levasse a sério a possibilidade de escritores brasileiros realmente se empenharem para incluir personagens diversificados, e acredito que essa ideia venha das discussões de que participo de vez em nunca sobre sexismo, homofobia, transfobia, etc, onde boa parte das pessoas sempre expressa (veementemente, eu diria) sua opinião de que esse papo de diversidade é querer controlar o processo criativo do escritor, que é criar um sistema de cotas, que o autor tem o direito de fazer o que quiser, etc, etc, etc.

Nessas discussões sempre acabo me perguntando por que diabos representar a realidade é algo visto como uma violação do processo criativo do escritor, por exemplo. Quero dizer, fazer um personagem negro realmente faria a fonte de criatividade de alguém secar e morrer? Representar pessoas reais seria criar um sistema de cotas? Apontar a falta de diversidade de um livro seria algemar o autor e impedi-lo de escrever sobre o que ele quiser? Hein???

Sinto muito, mas essa é uma linha de raciocínio que não faz o menor sentido pra mim, e vou tentar explicar o porquê nesse post. Abaixo estão as questões que geralmente aparecerem em discussões sobre representatividade e preconceito das quais participo em toda noite de lua cheia. 

  • Exigir diversidade é querer controlar o processo criativo do escritor/querer criar um sistema de cotas/querer impedir que o autor escreva o que ele quiser aka por que diabos continuar a fazer as coisas do jeito que elas já são é considerado tão errado por vocês?
Em um dos vários artigos sobre diversidade em livros, filmes, etc, que já li por aí (não lembro qual, infelizmente), o autor falou algo que basicamente responde a esse questionamento. Afinal, por que continuar a escrever livros sem personagens diversos é ruim? Por que o autor não pode simplesmente fazer o que quiser?

Antes de tudo, é óbvio que o autor pode fazer o que quiser. Ninguém está colocando uma arma na cabeça de fulano e o obrigando a escrever apenas personagens gays ou negros ou o que for. Querer diversidade vem pura e simplesmente da vontade de fazer parte da história, como todo homem branco, cis e hétero já faz desde sempre. Apontar a falta de diversidade é justamente mostrar que uma parte da sociedade foi (e é) simplesmente apagada das nossas histórias, e, é claro, esse apagamento não foi um acidente. Ele aconteceu e acontece com um propósito, e é por isso que continuar a escrever livros sem personagens diversos é ruim. Pessoas de grupos oprimidos foram apagadas por um motivo, e esse motivo é bem óbvio. 

Negar o poder das histórias é, sinceramente, burrice; elas moldam nosso modo de pensar e de agir desde o início dos tempos, não importa em que forma. Livros e, na era contemporânea, filmes, séries, comics, etc, mostram o que somos e o que podemos fazer, nos dizem quem são os amigos e os inimigos, e assim por diante. Afinal, filmes mostraram asiáticos e muçulmanos como inimigos em vários momentos das últimas décadas por um motivo: usar histórias para controlar o modo de pensar da população funciona. E é por isso que pessoas de cor, pessoas LGBT e mulheres são constantemente apagadas das histórias que contamos. Às vezes elas (hm, nós) não são sequer os inimigos. Elas simplesmente não existem, e se não existem não têm direito a nada.

Pessoas de cor, pessoas LGBT e mulheres obviamente existem e existem desde o início dos tempos. Dizer que não existiam pessoas de cor na Europa medieval é uma mentira que nos foi contada desde sempre fantasiada de realidade; dizer que mulheres só serviam para ter filhos durante boa parte da história lembrada da humanidade também, e o mesmo pode ser dito da ideia de que as orientações sexuais e gêneros que se diferenciem da hétero e do sistema binário são algo novo. O problema é: houve um apagamento. Afinal, a história é sempre contada pelo vencedor, e o vencedor, na maior parte das vezes, é também o opressor.

Apagar esses grupos da História e das histórias é, portanto, um ato de opressão. Simples assim. Fazer meninas, pessoas LGBT e pessoas de cor crescerem sem ver a si mesmo em livros, filmes, séries e comics é lhes dizer o seu lugar na sociedade, é deixar claro que não, não tem espaço para gente assim aqui. A internet está literalmente lotada de depoimentos de pessoas pertencentes a esses grupos, principalmente depoimentos que contem como foi se ver pela primeira vez na TV ou no cinema, ou em comics e livros. Não é preciso ler muitos para encontrar algo de semelhante neles: o alívio ao perceber que sim, "gente assim" pode fazer parte da sociedade, "gente assim" pode ser capitã de naves espaciais, pode derrotar o vilão ou simplesmente se apaixonar. Não precisa ser gênio para compreender o impacto que a falta de diversidade nas histórias que contamos tem, porque, por mais que algumas pessoas não percam tempo em gritar mas é só um livro/filme/etc!!!, não é só um livro ou filme ou o que for. Repito: histórias nos dizem quem somos e o que podemos ser. Se você não existe em histórias, se você é apagado o tempo inteiro de literalmente tudo a sua volta, fica difícil acreditar que sim, você é alguém, e que sim, você pode ser algo mais.

O autor do artigo que eu mencionei lá em cima diz que muitas das pessoas que continuam a reproduzir esse status quo não se tocam de que fazer isso é um gesto político. Por quê? Por causa de tudo que falei aí em cima. Esse status quo surgiu do desejo de oprimir esses grupos; reproduzi-lo, portanto, é reafirmar e perpetuar essa opressão.

Mas eu só quero contar uma história! Sim, eu sei. Reproduzir o status quo não te iguala a uma pessoa homofóbica, misógina, racista, transfóbica, etc, automaticamente. Mas histórias têm impacto e, você queira ou não, você está sim propagando a opressão desses grupos. Não, você lançar sua história cheia de homem branco, cis e hétero não vai atacar essas pessoas diretamente, mas sua história é mais uma em um mundo que já apaga essas pessoas, então sim, ela contribue.

Mas quando eu imaginei meus personagens nenhum deles era desse ou daquele jeito! Isso é algo normal. Afinal, as histórias que você viu durante a maior parte de sua vida eram bem uniformes nesse sentido. Eu mesma comecei a escrever porque estava de saco cheio de livros e filmes de fantasia cheios de homens onde a mulher era apenas um brinde no final da missão. Na época eu ainda me identificava como cis e como hétero, e eu sou branca, então nem me toquei para a ideia de criar personagens de cor ou personagens LGBT. Foi só quando vi alguém perguntar algo como, mas por que elfos não podem ser negros e por que o herói não pode ser gay? que eu percebi o que estava fazendo. Nas minhas histórias, corrigi apenas o que me incomodava diretamente: a falta de mulheres. A ideia de elfos negros ou de heróis gays sequer me passara pela cabeça. Afinal, histórias de fantasia não têm pessoas LGBT e raramente têm pessoas de cor, não é mesmo? Foi isso que eu vi a minha vida inteira, e foi isso que eu reproduzi, mudando apenas o que eu via como algo errado.

Não é surpresa nenhuma, portanto, que homens brancos, cis e hétero não se toquem para nada disso de primeira. Eles já são representados. Nada os incomoda. Por que mudar? As coisas sempre foram assim mesmo. E eles só querem contar uma história e histórias são inofensivas, então dá pra você, seu SJW irritante, parar de reclamar? É só um livro!

Mas histórias são tudo, menos inofensivas.

Essa ideia de que reproduzir o status quo não é um gesto político contribui também para livros como The Mirror Empire, da Kameron Hurley, serem considerados "propaganda feminista" ou "carregados de ideologia", porque, adivinha, tem mulher pra tudo quanto é lado, vários personagens não são hétero e em um dos reinos se casar com mais de uma pessoa é algo comum. Representar a realidade - porque várias pessoas não são hétero, polyamory is a thing e mulheres são tipo, metade da população na vida real. Chocante, eu sei. - é "propaganda feminista" ou "carregar uma ideologia", como se manter o status quo fosse simplesmente o normal, o default. Mas manter o status quo é defender uma ideologia sim, você sabendo disso ou não.

Então sim, continuar com o status quo é algo péssimo. E sim, você está livre para fazer o que quiser, mas não se iluda; toda palavra que você publica traz uma ideia por trás dela, mesmo que você não note e o faça de modo inconsciente.

  • Se vocês querem tanto personagens de cor ou LGBT ou mulheres, por que diabos vocês não criam os seus próprios? Por que encher nosso saco pra gente fazer o trabalho pra vocês?
Esse questionamento é tão ridículo que até mesmo pensar nele me faz rir. E é ridículo por um motivo simples: ele assume que a) pessoas de cor, pessoas LGBT e mulheres não estão fazendo nada sobre sua própria exclusão da mídia mainstream e b) que a ausência de histórias diversificadas nessa mídia mainstream é culpa dos grupos excluídos, que obviamente são preguiçosos e querem que o grande homem branco, cis e hétero resolva tudo. 

Porque né, não é como se editoras grandes, canais de TV e estúdios estivessem bloqueando histórias sobre mulheres, pessoas de cor e pessoas LGBT desde sempre. É só que elas (nós) não querem colocar a mão na massa e fazer algum esforço. Não é como se pessoas desses grupos estivessem escrevendo e lançando histórias sobre eles próprios há anos e sendo ignoradas e esquecidas. Nah. Esse tipo de coisa não acontece.

Mas bem, acontece. Straightwashing existe. Whitewashing existe. A ideia de que histórias sobre mulheres são algo raso, estúpido e sem valor existe. 

Vou falar primeiro sobre histórias sobre mulheres. Obviamente não encontraremos tais coisas em sci-fi ou fantasia, que são gêneros dominados por homens, então nos voltemos para os gêneros onde as mulheres têm algum espaço: romance e YA (que não é exatamente gênero, por falar nisso). Pensemos nos livros de romance que foram adaptados para o cinema. Aposto que algum do Nicholas Sparks apareceu aí na sua mente, certo? E Nicholas Sparks, você sabe, é um cara. Um cara branco, cis e hétero. Ou seja, mesmo em um gênero "de mulher", quem recebe os louros são uh, homens. Isso quer dizer que mulher nenhuma consegue ter fama? Óbvio que não. Mas as histórias escritas por homens são consideradas mais sérias e importantes sim.

Outro exemplo disso é John Green. John Green escreve livros YA. YA é um "gênero" desprezado por Deus e o mundo. Os livros YA de John Green não são desprezados por Deus e o mundo. Por quê?

Porque eles são considerados mais sérios. Mais importantes. Um romance YA escrito por uma mulher é raso, vazio, uma história supérflua. O escrito por um homem, por outro lado, é profundo. Universal. Tem significado e valor. 

Isso não acontece só na literatura. Bandas que têm mulheres ou meninas como fãs são consideradas inferiores. O mesmo acontece com filmes e séries. Se mulher gosta ou escreve, não tem valor. Simples assim. 

Muitos dizem que YA é um gênero que serve apenas pras mulheres se colocarem no lugar da protagonista e conseguirem o cara bonitão. Essas pessoas obviamente ignoram (ou escolhem ignorar) que o mesmo acontece com as histórias de super-heróis. A maioria esmagadora dos super-heróis eram caras comuns, muitas vezes nerds desprezados/ignorados e sem sorte com as mulheres antes de se tornarem o salvador da cidade/universo. Como super-heróis, porém, eles são poderosos, são o centro das atenções e conseguem a mocinha. YA e comics sobre super-heróis são bem mais semelhantes do que muitos imaginam, mas os zilhões de filmes sobre super-heróis são levados a sério. Os livros (e filmes) YA, por outro lado... Well.

E além disso, muitas autoras escolhem escrever YAs pelo simples fato de que elas são mais aceitas nesse gênero. Rae Carson, autora de The Girl of Fire and Thorns, um livro YA, e outras autoras como Kate Elliot (que fará seu debut YA esse ano), Cindy Pon, etc, falam justamente sobre isso nessa conversa no Twitter. As editoras de livros de SFF para adultos não dão o mesmo suporte e oportunidades para mulheres e homens, e assim cria-se o mito de que mulher não escreve fantasia épica ou ficção científica. As de YA, por outro lado, são bem mais justas nesse sentido, e quem iria apostar sua carreira em algo que não vai lhe dar um bom suporte? Ninguém com miolos, óbvio. Essa é uma das razões de YA ser dominado por mulheres enquanto SFF para adultos é basicamente apenas para homens na mídia mainstream. 

(E muita gente despreza fantasia urbana escrita por mulher pra lamber as botas de fantasia urbana escrita por homens, né).  

O straightwashing e o whitewashing são ainda mais óbvios. Muitos livros de ficção especulativa simplesmente não são publicados se tiverem um protagonista queer ou de cor. E quando livros com protagonistas de cor conseguem ser publicados, esse tipo de coisa acontece:


Liar, de Justine Larbalestier, causou uma polêmica logo quando foi publicado porque a protagonista, Micah, se descreve como tendo cabelo preto e crespo e pele negra, mas a capa mostrava uma garota branca com cabelos lisos. Depois de muita confusão, a autora fez um post em seu blog explicando que tinha sido contra a capa desde o início, mas que não teve como impedir que ela fosse escolhida. Nesse post ela diz:
Every year at every publishing house, intentionally and unintentionally, there are white-washed covers. Since I’ve told publishing friends how upset I am with my Liar cover, I have been hearing anecdotes from every single house about how hard it is to push through covers with people of colour on them. Editors have told me that their sales departments say black covers don’t sell. Sales reps have told me that many of their accounts won’t take books with black covers. Booksellers have told me that they can’t give away YAs with black covers. Authors have told me that their books with black covers are frequently not shelved in the same part of the library as other YA—they’re exiled to the Urban Fiction section—and many bookshops simply don’t stock them at all. How welcome is a black teen going to feel in the YA section when all the covers are white? Why would she pick up Liar when it has a cover that so explicitly excludes her?
The notion that “black books” don’t sell is pervasive at every level of publishing. Yet I have found few examples of books with a person of colour on the cover that have had the full weight of a publishing house behind them.4 Until that happens more often we can’t know if it’s true that white people won’t buy books about people of colour. All we can say is that poorly publicised books with “black covers” don’t sell. The same is usually true of poorly publicised books with “white covers.”

Ou:
Todos os anos, em cada editora, intencionalmente ou não, há capas que sofrem whitewashing. Desde que eu disse a amigos do ramo o quão chateada estava com a capa de Liar, tenho ouvido histórias de todas as editoras sobre o quão difícil é publicar um livro com uma capa com uma pessoa de cor. Editores me disseram que seus departamentos de vendas dizem que "capas negras" não vendem. Os representantes de vendas já me disseram que muitos não estocam livros com "capas negras". Livreiros me disseram que eles não podem dar livros com "capas negras" em sorteios. Autores já me disseram que seus livros com "capas negras" não são colocados na mesma parte da biblioteca junto com outros livros YA com frequência - eles são exilados para a seção de ficção urbana - e muitas livrarias simplesmente não fazem estoque desses livros. Quão bem vinda uma adolescente negra vai se sentir na seção YA quando todas as capas são brancas? Por que ela iria pegar Liar quando a capa a exclui de forma tão explícita?
A noção de que "livros negros" não vendem é generalizada em todos os níveis da publicação. No entanto, eu encontrei poucos exemplos de livros com uma pessoa de cor na capa que tiveram todo o suporte de uma editora por trás deles. Até que isso aconteça com mais freqüência, não podemos saber se é verdade que as pessoas brancas não vão comprar livros sobre pessoas de cor. Tudo o que podemos dizer é que os livros pouco divulgados com "capas negras" não vendem. O mesmo geralmente é verdade para livros pouco divulgado com "capas brancas."
O número de reclamações aumentou e a capa de Liar foi finalmente mudada. 


O engraçado é que Liar vendeu tão "pouco" que já foi publicado aqui no Brasil. 

Liar (ou Confesso Que Menti) não foi o primeiro livro a sofrer whitewashing e nem foi o último. Quero dizer:


 

Ou:


Ou ainda os que simplesmente não são corrigidos na próxima edição, como She's so money, livro em que a protagonista é asiática:


E falando de livros mais conhecidos para o público que curte SFF, os livros de A Wizard of Earthsea, da Ursula Le Guin:


E ainda falando da Le Guin, em 2004 o canal Syfy fez uma minissérie de A Wizard of Earthsea, onde literalmente apenas um personagem era de cor:


A resposta de Le Guin foi maravilhosa:

On Tuesday night, the Sci Fi Channel aired its final installment of Legend of Earthsea, the miniseries based—loosely, as it turns out—on my Earthsea books. The books, A Wizard of Earthsea and The Tombs of Atuan, which were published more than 30 years ago, are about two young people finding out what their power, their freedom, and their responsibilities are. I don't know what the film is about. It's full of scenes from the story, arranged differently, in an entirely different plot, so that they make no sense. My protagonist is Ged, a boy with red-brown skin. In the film, he's a petulant white kid.
[...]
I didn't see why everybody in science fiction had to be a honky named Bob or Joe or Bill. I didn't see why everybody in heroic fantasy had to be white (and why all the leading women had "violet eyes"). It didn't even make sense. Whites are a minority on Earth now—why wouldn't they still be either a minority, or just swallowed up in the larger colored gene pool, in the future?
[...]
But I had endless trouble with cover art. Not on the great cover of the first edition—a strong, red-brown profile of Ged—or with Margaret Chodos Irvine's four fine paintings on the Atheneum hardcover set, but all too often. The first British Wizard was this pallid, droopy, lily-like guy—I screamed at sight of him.
Ou:

Na terça-feira à noite, o Sci Fi Channel [antigo nome do Syfy] exibiu sua parcela final de Legend of Earthsea, a minissérie baseada - bem de leve, aparentemente - nos meus livros de Earthsea. Os livros, A Wizard of Earthsea e The Tombs of Atuan, que foram publicados mais de 30 anos atrás, são sobre dois jovens descobrindo o que seus poderes, sua liberdade e suas responsabilidades são. Eu não sei sobre o que é o filme. Ele está cheio de cenas da história, dispostos de forma diferente, em uma trama completamente diferente, de modo que não fazem sentido. Meu protagonista é Ged, um garoto com a pele vermelho-acastanhada. Na minissérie, ele é um garoto branco petulante. 
[...] 
Eu não entendo porque as pessoas na ficção científica tinham que se chamar Bob ou Joe ou Bill. Eu não entendo porque as pessoas na fantasia heróica tinham que ser brancos (e por que todas as mulheres principais tinham "olhos violeta"). Isso nem sequer faz sentido. Os brancos são uma minoria na Terra agora - por que eles não seriam ainda uma minoria ou não teriam simplesmente sido engolidos pela maior piscina de genes colorido, no futuro? 
[...] 
Mas eu tive problemas intermináveis ​​com arte da capa. Não na ótima capa da primeira edição - um perfil forte, vermelho-marrom de Ged - ou com as quatro pinturas de Margaret Chodos Irvine no set de capa dura de Atheneum, mas problemas aconteceram muitas vezes. A primeira edição britânica de Wizard tinha esse cara pálido, caído, parecido com um lírio na capa - eu gritei ao vê-lo.
(Fonte).

Esses casos são os que conseguem ser publicados. A maior parte sequer chega a isso, já que há essa ilusão (e vou explicar porque é ilusão) de que livros sobre personagens de cor ou personagens LGBT não vendem porque brancos/héteros não leem sobre personagens queer ou de cor. Nem preciso falar que essa ideia meio que apaga as pessoas de cor ou pessoas queer do público, né? Só branco e hétero lê, obviamente. Claro.

Straightwashing acontece com uma frequência ainda maior, na minha opinião. Aqui e ali um livro de ficção especulativa com um/a protagonista gay/lésbica pode até ser publicado (geralmente YAs), mas com um personagem trans? Um personagem não-binárie? Um personagem assexual? Nem mesmo se o melhor escritor da Terra escrevesse um livro de fantasia com um protagonista trans e saísse mandando para agentes visando as maiores editoras do mercado o livro seria publicado. Aposto meu reino nisso.

Tecnicamente, straightwashing sequer fala de personagens trans ou não-binárie, já que gênero e sexualidade são coisas totalmente diferentes, mas praticamente nenhum livro com personagens trans e não-binárie é publicado, então nem tem como fazer washing. A coisa tá nesse nível.

Mas straightwashing acontece o tempo todo. Exemplos:

Rachel Manija Brown e Sherwood Smith escreveram um livro distópico chamado Stranger com cinco personagens com POV. Um desses personagens é Yuki Nakamura, que é gay e tem um namorado. As duas passaram anos procurando um agente para o livro, sem sucesso. Ninguém queria a história. Um agente até mesmo disse que aceitaria representar os livros se elas tirassem o POV de Yuki ou o tornassem hétero, coisa que elas obviamente não fizeram. 
This isn’t about that specific agent; we’d gotten other rewrite requests before this one. Previous agents had also offered to take a second look if we did rewrites… including cutting the viewpoint of Yuki, the gay character. We wondered if that was because of his sexual orientation, but since the agents didn’t say it out loud, we could only wonder. (We were also told that it is absolutely unacceptable in YA for a boy to consensually date two girls, but that it would be okay if he was cheating and lying. And we wonder if some agents were put off because none of our POV characters are white.)
[...]
The overwhelming white straightness of the YA sf and fantasy sections may have little to do with what authors are writing, or even with what editors accept. Perhaps solid manuscripts with LGBTQ protagonists rarely get into mainstream editors’ hands at all, because they are been rejected by agents before the editors see them. How many published novels with a straight white heroine and a lesbian or black or disabled best friend once had those roles reversed, before an agent demanded a change?
Ou:
Isto não é sobre esse agente específico; nós recebemos outros pedidos de reescrita antes desse. Agentes anteriores também se ofereceram para dar uma segunda olhada, se fizéssemos reescritas... o que incluía tirar o POV de Yuki, o personagem gay. Nós nos perguntamos se era por causa de sua orientação sexual, mas uma vez que os agentes não disseram isso em voz alta, podíamos apenas suspeitar. (Também foi nos dito que é inaceitável em um YA para um menino namorar consensualmente duas meninas, mas que tudo estaria bem se ele estivesse enganando e mentindo. E nós nos perguntanos se alguns agentes foram desanimados pelo fato de que nenhum de nossos personagens com POV é branco).
[...]
A quantidade absurda de YAs de ficção científica e fantasia com personagens brancos e héteros pode ter pouco a ver com o que os autores estão escrevendo, ou mesmo com o que os editores estão aceitando. Talvez manuscritos sólidos com protagonistas LGBT raramente acabem nas mãos dos editores tradicionais, porque eles são rejeitados por agentes antes dos editores vê-los. Quantos romances publicados com uma heroína branca e hétero e um melhor amigo gay ou negro ou com alguma deficiência tinham esses papéis invertidos antes de um agente exigir uma mudança?
E nos comentários do post:
My first publisher (one of the Big 6) didn’t ask me to take out the gay character. My editor went through and deleted all gay references between my copyedits and the first pass pages without bothering to tell me.
I pitched a fit and my agent backed me up. The gay character stayed in the novel, as written.

Ou:
Minha primeira editora (uma das Seis Grandes) não me pediu para tirar o personagem gay. Meu editor suprimiu todas as referências gays entre meus copyedits e as primeiras páginas sem se preocupar em me dizer.
Eu fiz uma cena e meu agente me apoiou. O personagem gay ficou no livro, do jeito que o tinha escrito.
E sim, Stranger eventualmente foi publicado.


Outro exemplo é o da antologia Wicked Pretty Things, em que uma das autoras selecionadas, Jessica Verday, acabou retirando sua história. O motivo:
I've received a lot of questions and comments about why I'm no longer part of the WICKED PRETTY THINGS anthology (US: Running Press/UK: Constable & Robinson) and I've debated the best way to explain why I pulled out of this anthology. The simple reason? I was told that the story I'd written which features Wesley (a boy) and Cameron (a boy), who were both in love with each other, would have to be published as a male/female story because a male/male story would not be acceptable to the publishers. 
I'll try to keep the "not-so-simple" reason from becoming a rant and just sum it up by saying that was SO Not Okay with me. I immediately withdrew my story and my support from the anthology.
Ou:
Recebi um monte de perguntas e comentários sobre o porquê de eu não estar mais fazendo parte da antologia WICKED PRETTY THINGS (US: Running Press / UK: Constable & Robinson) e eu tenho debatido sobre a melhor maneira de explicar porque me retirei dessa antologia. A simples razão? Foi-me dito que a história que eu tinha escrito, que apresenta Wesley (um menino) e Cameron (um menino), apaixonados um pelo outro, teria que ser publicada como uma história sobre um homem e uma mulher porque uma história sobre dois homens não seria aceitável para as editoras.
Vou tentar impedir a razão "não tão simples" de se tornar um discurso retórico e apenas resumir dizendo que isso é TÃO Não Okay comigo. Eu imediatamente retirei minha história e meu apoio da antologia.
 (Fonte).

Há vários outros exemplos, claro. Tipo, muitos. Aos montes. Mas eu ficaria aqui pra sempre se fosse falar de cada um, então prossigamos: pessoas queer, de cor e mulheres estão escrevendo sobre si mesmo desde sempre, mas quem disse que conseguem publicar? Então não, não estamos parados esperando alguém mudar a situação. E a única forma de mudar a situação, aparentemente, é apontar quantas obras mainstream não possuem sequer um personagem diverso até que se toquem de que sim, existimos, e sim, temos direito a ser mainstream também.

  • Ah, mas histórias sobre personagens de cor ou queer ou sobre mulheres não fazem sucesso porque não tem público! As editoras não publicam porque não tem demanda!
Acho que no quesito anterior já respondi essa pergunta. Editoras (e agentes) não publicam histórias sobre personagens queer ou de cor porque pensam que não vai dar certo, que não vai dar dinheiro, que não vai ter audiência. Mas isso é mentira, principalmente ao se levar a comunidade queer em conta. Se você colocar um personagem gay ou bi ou o que for em seu livro, série, etc, pode ter certeza de que consegue arrastar uma boa parte da comunidade inteira só por isso. Hoje mesmo dei o exemplo da série The 100, cuja protagonista, uma garota supostamente hétero (e já tendo tido relacionamentos com caras), beija outra garota, sendo portanto bissexual.. O tanto de gente que começou a assistir a série só por causa disso não está no gibi.

Tem um público para histórias assim, mas ninguém quer se arriscar. O mesmo aconteceu com YA por um bom tempo. Quero dizer, antes de Crepúsculo, que YA fazia sucesso? Quase nenhum, se é que havia. Mas depois? Pff. Quantos outros YAs já não foram adaptados para o cinema ou serão em breve? Divergente, Cidade dos Ossos, Correr ou Morrer, Jogos Vorazes, etc. E desses o único que não foi tão bem assim foi Cidade dos Ossos (o filme foi meio mal-feito também, né). Os caras de Hollywood já perceberam que história sobre mulheres - sobre garotas - vende, mas antes de Crepúsculo ninguém sequer considerava a ideia por acreditar que era furada - a mesma coisa que fazem com histórias com personagens queer ou de cor hoje em dia.

Vale frisar que nem precisa ser YA. Preciso falar de Cinquenta Tons de Cinza? A série é super problemática e foi chamada de "mommy porn", mas esta aí, faturando que só, e o público é quase todo de mulheres. Histórias sobre mulheres/garotas dão muito dinheiro.

E editoras sequer contam pessoas de cor ou pessoas queer como público, como eu disse lá em cima. Há esse mito bizarro de que só pessoas brancas e héteros leem e que só elas são o público, mas mesmo os EUA, onde a maioria é branca, tem muita, mas muita gente de cor. Geralmente acham que é um número baixo por contarem só negros, mas pessoas de cor são asiáticas, são africanas, são latinas, etc. E o mesmo acontece com a comunidade queer, já que são "minoria", mas tipo, junte o número de gays, lésbicas, bissexuais, panssexuais, assexuais, trans, não-bináries, etc, e você vai ter gente pra caramba. Gente que, como eu disse, vai procurar seu livro apenas por ele ter um personagem queer.

Conclusão: há público. Só falta as editoras descobrirem isso. 
  • Mas publicação independente! E editoras menores!
Se você escutar com atenção poderá me ouvir suspirando ao infinito e além.

Sim, tem a publicação independente. Fenômeno, aliás, que só ganhou força mesmo nos últimos cinco anos (mais ou menos). Pessoas queer ou de cor estão publicando de modo independente sim, mas suas histórias não chegam ao mainstream. Sabe quais são alguns dos livros de SFF independentes que chegaram ao mainstream? Silo, de Hugh Howey, A Canção do Sangue, de Anthony Ryan, As Revelações de Riyria, de Michael J. Sullivan e The Martian de Andy Weir. O que esses livros têm em comum? Fácil: são sobre homens brancos, cis e héteros e escritos por homens brancos cis e héteros. Tada!

Por mais que pessoas queer ou de cor publiquem suas histórias, ninguém sabe que elas estão publicando. Elas vivem no limbo, num nicho minúsculo, com a maior parte do seu público crente que histórias sobre pessoas queer e de cor não existem, simplesmente porque pouquíssimas chegam ao mainstream. Aí cria-se o mito de que pessoas queer ou de cor estão paradas sem fazer nada esperando o homem branco, hétero e cis resolver os problemas do mundo pra elas.

O mesmo acontece com editoras menores. Elas não têm o mesmo poder das maiores e não têm dinheiro, então como divulgar bem um livro sobre personagens queer ou de cor? Não divulga. Poucos, só os que saem procurando mesmo, encontram esses livros, tanto os de editoras menores quanto os independentes. Não há visibilidade. O mercado editorial não é baseado na meritocracia. Muito depende da sorte e de conseguir uma boa editora. 

A única história sobre personagens queer que eu conheço que está quase no mainstream é Captive Prince, da C.S. Pacat, que postava a história de graça no livejournal dela. E a história fez tanto sucesso que uma das editoras maiores (a Penguin) comprou os direitos dos livros e vai publicá-los de modo tradicional. Captive Prince vai ser lançado oficialmente já tendo mais de 3 mil avaliações no Goodreads. 

Há público. Há histórias. Mas fazer esse público encontrar essas histórias é que o problema. Captive Prince teve uma sorte que a maioria dos livros sobre personagens queer simplesmente não têm. Simples assim.

E sinto muito, mas publicar seu livro de modo independente não vai fazer você ser mainstream. Você tem que ter a sorte do milênio pra isso acontecer. Não rola fácil assim não. "Publiquem de modo independente" não é a solução para pessoas que tiveram sua identidade apagada desde antes de nascer. 

Falei bastante do internacional, mas tudo aí de cima se aplica à realidade brasileira também. Lembra que eu disse que pensava que não existia nem mesmo a possibilidade de escritores brasileiros se importarem com representação? Pois eu estava enganada. E cometi um erro que quase todo mundo comete: pensei que não tinha pessoas de cor ou pessoas queer escrevendo fantasia e ficção científica no Brasil. Mas elas existem. Nas editoras minúsculas e nos livros independentes que mal recebem divulgação e que por isso ficam no nicho minúsculo de sempre. Eu só a encontrei mesmo porque escrevo histórias assim e estava procurando quem lesse; o leitor padrão não vai nem pensar em procurá-las porque, assim como eu fiz, vai assumir que tais histórias não existem aqui no Brasil (ou em qualquer lugar).

O Manifesto Irradiativo é, portanto, não apenas sobre a representação desses grupos na ficção especulativa brasileira. É sobre a inclusão de pessoas desses grupos no mercado editorial nacional. É sobre ter editores, agentes (os poucos que temos aqui no Brasil), e todo o tipo de profissional queer ou de cor. Se somente brancos, cis e héteros fazem a filtragem, como histórias diversificadas serão publicadas? 

Não me entenda mal. Sei que tem muita gente branca (eu sou branca, né lol), cis e hétero que é aliado e quer ajudar, mas a maioria ainda está com medo de arriscar e de apostar em histórias e escritores queer e de cor. O Manifesto Irradiativo está aí justamente para mostrar que uma mudança é necessária, e que ela vai sim acontecer, cedo ou tarde. 

Para saber mais sobre o Manifesto Irradiativo é só visitar seu blog e para ajudar é só assiná-lo e divulgá-lo. Quanto mais pessoas souberem sobre o manifesto melhor - afinal, a gente precisa provar o tempo que existimos e que produzimos, não é mesmo? Eu ainda acredito que um dia participarei de uma discussão em português em que não me venham com "sistema de cotas" e "controle de processo criativo" no meio da cara. Porque né, a esperança é a última que morre. 

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4 comentários

  1. passei 3 dias lendo esse post e ainda fiquei com dó que acabou, muito bom <3

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  2. Eu definitivamente amei e adorei o post. Muito obrigado mesmo por acreditar no projeto.

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    1. De nada, é um prazer pra mim. E fico feliz que tenha gostado!

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