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Rants literário: Realismo em livros de fantasia

15:35neo


Vou discutir diversidade (ou a falta dela) nesse texto. Se não for seu tipo de assunto, aconselho não ler. Also: TW para menção de estupro e violência sexual.

Como praticamente todo mundo já sabe, o episódio da semana passada de Game of Thrones foi muito criticado por ter mostrado Sansa Stark, uma das personagens principais da série, sendo estuprada por Ramsay Snow/Bolton, seu marido, enquanto Theon Greyjoy assistia. Tal coisa não acontece nos livros. Lá quem é estuprada e quem se casa com Ramsay é Jeyne Poole, amiga de Sansa, o que pra mim é ainda pior, já que na série Sansa pelo menos tem a chance de ter algum desenvolvimento baseado na violência que ela sofreu, enquanto Jeyne Poole é uma ninguém e Martin provavelmente não vai lhe dar desenvolvimento nenhum, fazendo de seu estupro o motivo para Theon tomar prumo na vida. (Women in refrigerators, hm?)

Não é a primeira vez que Game of Thrones é criticado por mostrar violência contra mulheres. O mesmo aconteceu quando Ros foi assassinada com uma flechada no peito e outra na vagina, quando Talisa morreu com uma facada na barriga (e ela estava grávida), quando Cersei foi estuprada por Jaime na temporada anterior ou ainda quando fizeram a primeira noite de Daenerys e Drogo outro estupro (pra mim é estupro nos livros também, já que Dany tem 13 anos, mas na primeira noite ela aceita sim fazer sexo com ele - depois disso já é outra história). Os escritores da série acharam necessário adicionar essas cenas por sabe-se lá qual motivo. Muitos dizem que as críticas são mimimi e que na Idade Média as coisas eram assim mesmo, mas o engraçado é que essas pessoas sequer percebem que se a série é baseada na Idade Média o livro também é, e lá a Cersei sendo estuprada, a Ros morrendo de forma horrível e a Talisa sendo morta com um golpe na barriga não são coisas que acontecem (até porque a Talisa - que tem outro nome nos livros - não morre). Logo, essa desculpa de mimimi era assim na Idade Média!!! cai por terra (não vou nem discutir o fato de que Westeros não é a Idade Média, porque né).

Mas toda essa discussão acabou levantando mais debates sobre o realismo nos livros de fantasia baseados na Idade Média. Afinal, até onde se é possível usar o argumento de que na era medieval tal coisa era assim quando o mundo da história é original, completamente independente desse período e totalmente extraído do contexto que o levou a ser desse jeito? A maior parte dessas histórias nunca oferece explicações sobre como coisas da Idade Média - homofobia, misoginia, etc - foram parar no mundo delas; há alguma relação entre homofobia, misoginia, etc, e religião? Se o mundo tiver mais de uma religião, há diferença no modo com que eles veem tais assuntos? Ou não é relacionado a religião e na verdade vem de outro motivo qualquer, outro contexto histórico? 

Enfim, como diabos isso aconteceu?

We may never know ¯ \ _ (ツ) _ / ¯

Usar ideais da Idade Média sem contextualizá-los no seu mundo original é escrita preguiçosa. É fazer isso porque sempre foi feito assim; é despejar tinta no tela sem nem olhar a cor pra ver se é a certa; é seguir a manada sem questionar. E o que é pior: é seguir a manada e repetir todos os erros e incongruências da manada sem nem parar para pensar nisso. Sabe por quê?

Porque havia pessoas de cor na Idade Média¹ e não há pessoas de cor em boa parte dos livros mainstream de fantasia. Porque mulheres participavam ativamente da sociedade na Idade Média e eram importantes² e o mesmo não acontece com tanta frequência na literatura fantástica (mas sim, acontece em Game of Thrones). Porque havia pessoas queer na Idade Média³ e não há nem rastro delas em 90% dos livros por aí (Game of Thrones também foi mais realista nesse aspecto). E o que é interessante, em tempos de guerra (e vocês bem sabem que a maioria das histórias de fantasia se passa em tempos de guerra) homens são vítimas frequentes de violência sexual*, bem mais do que as mulheres porque né, é lógico que há mais homens do que mulheres nos campos de batalha e acampamentos. Mas com que frequência vemos personagens masculinos sendo estuprados? Com que frequência vemos mulheres importantes para o plot ou pessoas de cor ou queer? Isso tudo é realismo, isso tudo aconteceu na Idade Média, mas estranhamente apenas a violência sexual contra a mulher acaba se enfiando na histórias, geralmente como plano de fundo para ilustrar o quão terrível e injusto o mundo é. Por quê? Por que não vemos esses outros aspectos do realismo, realismo este que tantos defendem quando alguém questiona o fato de mais uma mulher sendo estuprada em uma série de fantasia?

A resposta é simples: a maior parte dos livros de fantasia mainstream é escrita por homens cis, héteros e brancos para homens cis, héteros e brancos.

Não, eu não estou dizendo que não existe mulher homofóbica ou racista ou mesmo sexista (ô se existe), mas mulheres não entram no público alvo na hora que esses escritores pensam em quem vai ler suas obras. Também não estou dizendo que isso é feito de propósito e nem que os escritores querem alienar parte de seu público ao fazer suas histórias desse jeito. Mas acontece, e acontece justamente porque sempre seguem a manada sem pensar duas vezes. É mais fácil fazer as coisas como elas sempre foram do que realmente pensar e refletir sobre como tais coisas deveriam ser feitas.

Violência sexual contra a mulher é visto como algo normal. Sempre aconteceu, sempre vai acontecer e é isso mesmo. Cenas com tal conteúdo são usadas para chocar, claro, mas não chocar tanto. Ou melhor, para não chocar tanto o homem que as assiste. O que chocaria o homem demais mesmo é ver aquele personagem masculino foda/badass/whatever sendo estuprado do mesmo jeito que tantas personagens femininas o são, e é por isso que homens quase nunca sofrem qualquer tipo de violência sexual em livros, filmes ou séries. Mulheres sendo estupradas? Ih, é ruim e desagradável, mas é a vida, né? Mas homens sendo estuprados? Aí já é um escândalo. Já é demais.

Outro indício de que histórias de fantasias são voltadas principalmente para homens pode ser encontrado ainda em Game of Thrones: a sexualização de mulheres lésbicas, ou melhor dizendo, de mulheres fazendo "sexo lésbico". Mulheres aparecem nuas o tempo inteiro na série, claro (bem mais do que os homens), mas as cenas de sexo entre mulheres são estupidamente abundantes se você levar em conta que (aparentemente) nenhuma personagem feminina é lésbica e as que talvez sejam nunca aparecem nessas cenas. E o que é pior: sempre há um homem assistindo tudo. É o ápice da transformação de relacionamentos entre mulheres em fetish para que o homem hétero ache sexy. Em momento nenhum a série leva em conta as mulheres lésbicas e bissexuais que quase nunca se veem representadas na mídia e que quando veem é apenas para que o homem hétero se divirta e ache bonito. 

E se mulheres não fazem parte do público alvo dessas histórias, pessoas queer e de cor fazem ainda menos. Na maior parte do tempo elas sequer existem, e quando alguém reclama dessa falta de realismo as mesmíssimas pessoas que correm para gritar que as feministas estão estragando tudo ao questionar cenas de violência contra mulheres são as que resmungam que agora tudo tem que ser por cota. Cota pra negro na história, cota pra gay na história, cota pra mulher na história... Esqueçamos que lá na bendita Idade Média as coisas eram assim, né? Que isso faz parte do tal ~realismo~ que tanto querem, hm? 

Escolher vitimizar as mulheres através de violência sexual pra ser pseudo-realista é bem mais fácil do que ser realista de verdade. E obviamente incomoda bem menos.

Outra coisa a se levar em conta é a frequência com que a Idade Média é escolhida como base para tantos mundos de fantasia. Será que isso acontece por que é mais fácil de se fazer, já que é o que predomina na literatura fantástica? Se sim, seria assim tão difícil modificar esse mundo pseudo-medieval para ser mais igualitário? Acredito que não, então por quê? Por que continuar recriando a mesma coisa e continuar deixando tantos grupos sofrendo opressão quando não é tão complicado fazer o contrário? 

Talvez o escritor deseje criar personagens que enfrentam essa opressão, certo? É uma possibilidade, afinal de contas, e uma bem interessante, mas tenho pra mim (e você pode discordar, tá?) que o uso da Idade Média como base pra tudo serve muito mais para apagar esses grupos e assim abrir espaço para personagens homens, cis, héteros e brancos do que para oferecer um ambiente para histórias de personagens marginalizados. I mean, sexismo, homofobia e racismo na era medieval são usados para justificar a ausência de mulheres, pessoas queer e pessoas de cor, porque você sabe, né, sexismo faz as mulheres aparecerem apenas para parir, homofobia e transforbia fazem as pessoas queer desaparecem com o sopro do vento e racismo faz as pessoas de cor se fecharem em suas casas e não viajarem nunca para a terra do homem branco. Obviamente.

Escritores escrevem o que quiserem, claro, e ninguém os está obrigando a nada. Mas é interessante refletir sobre certas coisas de vez em quando.

Em conclusão, essa exigência de realismo em livros de fantasia é conversa pra boi dormir. As pessoas que o exigem são quase sempre as mesmas que condenam quando outras o pedem por completo, com mulher, gente queer e de cor e tudo mais. Ah, mas era assim na Idade Média! não é argumento para livros que não seguem a risca as dinâmicas da Idade Média, simples assim. O escritor escolhe fazer tudo do jeito que aparece no livro/série/filme, e se ele ignora o resto do ~realismo~ não é o ~realismo~ que vai salvá-lo na hora das críticas. Essa conversa de realismo serve apenas aos grupos que não são excluídos de modo algum das histórias de fantasia.

E é esse foco que a literatura fantástica mainstream tem no homem branco cis e hétero é o principal motivo para eu estar me afastando de livros de fantasia escritos por homens. Ainda leio vários, claro, e dos meus quatro escritores favoritos dois são homens, mas no fim das contas vale mais a pena ler livros escritos por esses grupos que são excluídos mesmo. Antigamente eu via isso tudo como o "preço a pagar" para ler meu gênero favorito; sim, eu vou ter que aguentar homens falando de mulheres como se elas fossem pedaço de carne durante o livro inteiro; sim, eu vou ter que suportar o ar cheio de testosterona porque mulheres estão sempre em falta nesse mundo; sim, aquela é mais mulher sendo romantizada e sexualizada pelo palerma do protagonista (que Deus me ajude); e olha, mais uma mulher/pessoa de cor/pessoa queer sofreu uma morte horrível para incentivar outro homem branco e hétero, que novidade!; e yeep, o escritor nunca pensou que essas cena entre essas duas pessoas do mesmo sexo seria interpretada como romântica, mas você já a leu direito? É o maior pseudo queerbaiting** da história.

Mas não mais, felizmente. Desde que movi do mainstream para as áreas mais desconhecidas da fantasia (em inglês geralmente, já que coisa não mainstream publicada aqui no Brasil é meio impossível) me dei conta de que eu não preciso pagar preço nenhum para apreciar o gênero que se tornou meu favorito antes mesmo de eu completar 7 anos de idade. Eu não tenho que aguentar nada para ler o que eu gosto. Se antes eu insistia em um livro particularmente heteronormativo, cheio de homens e de pessoas brancas, hoje eu posso desistir da leitura e abrir outro, e se esse também não me agradar pelos mesmos motivos, há centenas na fila. Hoje em dia eu não pago coisíssima nenhuma, e não me obrigo a suportar mais nada. 

Nem mesmo Game of Thrones

(Em inglês:

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9 comentários

  1. "A resposta é simples: a maior parte dos livros de fantasia mainstream é escrita por homens cis, héteros e brancos para homens cis, héteros e brancos." Isso foi a coisa mais babaca que eu já li, meu deus.

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  2. "Escritores escrevem o que quiserem, claro, e ninguém os está obrigando a nada. Mas é interessante refletir sobre certas coisas de vez em quando." Disse tudo.

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  3. Concordo em partes com seu texto, mas não vejo nenhum problema em dizer que certos comportamentos são baseados em períodos históricos, como na idade média. Como os autores dizem as histórias são BASEADAS, e não copias reais do período em questão. Alias, não existe nenhum livro de ficção que seja totalmente original e que contextualize TUDO, ate por que isso se torna chato e desnecessário. A licença poética está ai.

    Além disso, não acho que a literatura tenha que ter algum tipo de compromisso social, a ponto de perpetuar algum tipo de ideologia. Cada um escreve o que quer, sempre vai ter um publico para ler e um nicho interessado.

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    1. Não há problema algum em dizer que certos comportamentos são baseados em períodos históricos; eu questiono a escolha desses autores, ou seja, o que eles escolhem colocar dos períodos históricos em que baseiam suas histórias e o que escolhem retirar usando a tal da licença poética. Na maior parte das vezes, como mencionei, deixam a violência sexual contra às mulheres e tiram a violência sexual contra os homens, velhos ou crianças, e eu queria questionar o porquê é tão comum vitimizar a mulher e "esquecer" que outros grupos também sofriam o mesmo.

      Quanto à literatura ter compromisso social ou não, tenho que discordar. A literatura vem sendo usado há seculos também como meio de opressão ou apagamento de povos e grupos de menor poder social, então não vejo nada mais natural do que haver sim um compromisso hoje em dia. Mas você está certo; cada uma escreve o que quiser e ninguém pode obrigar escritor algum a fazer nada.

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  4. Um comentário que sempre acho pertinente quanto surge a questão do estupro (praticamente só das mulheres, ÓBVIO). É impressionante o tanto de caras que conheço ou que já vi falando online que acharam o livro A Filha do Sangue pesado e alguns nem terminaram de ler. Ué, só porque neles os homens são escravos sexuais e uma castração é mostrada como diversão da rainha? tsk tsk tsk

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    1. Né? É interessante falar disso porque o estupro de mulheres já está praticamente normalizado na nossa mídia e é visto como um mal inevitável. Mas o estupro de homens é completamente ignorado e ninguém fala sobre, quase como se fosse horrível ou pesado demais para ser mencionado - ao contrário do estupro de mulheres. Ou seja, violência sexual contra a mulher é aceitável, mas se for contra o homem... Ih, aí a casa cai.

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  5. Muito bom o texto! Muito são! Meu gênero preferido também é fantasia e admito que fica difícil ler um livro sem em algum momento ficar desconfortável com algo. Outra coisa que me incomoda é como a cena do estupro da mulher é descrita: sempre focando no homem,no que o estuprador está sentindo fazendo um ato tão ~cruel~ e em tudo que aquilo representa pra ele etc,fica tipo um divisor de águas na mente dele mas a vítima, a mulher fica lá um pedaço de carne sofrendo,mas seu sofrimento não é "aprofundado" como o do agressor...enfim,seu texto é muito bom :)

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    1. Obrigada!
      E sim, isso me incomoda muito também. A dor da mulher acaba mesmo muitas vezes sendo usada para motivar o homem de alguma forma. Ou seja, ela se torna um "plot device" e não um personagem completo e aprofundado, e ele recebe toda a atenção do escritor (e também do leitor). É algo infelizmente bem comum.

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