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Rants literários: onde estão as autoras de fantasia no mercado brasileiro?

19:04neo



Quem presta um pouco de atenção no fandom de SFF brasileiro provavelmente já viu posts sobre esse assunto: afinal, onde estão as escritoras de ficção científica e fantasia? Por que só tem homem pra todo lado? Por que mais da metade do que eu leio foi escrito por alguém do sexo masculino?

Muita gente já respondeu isso, e como eu também já comentei sobre o assunto aqui em rants passados, também não vou me demorar muito nele agora. Uma coisa, porém, é clara: mulheres recebem menos atenção dos círculos adultos de SFF. Em YA elas ainda têm vez, mas na literatura adulta? Nope. Isso é algo estrutural. Lá fora, pelo menos, elas recebem menos pelos livros, são divulgadas menos pelas editoras, são resenhadas menos por blogueiros e leitores e facilmente caem no esquecimento, não importa quão bom (ou não) seus livros tenham sido. Várias autoras já escreveram sobre isso, e não apenas uma vez (deixarei alguns links no fim do post para ~comprovar~ isso).

Escritoras brasileiras de SFF não poderiam estar em situação diferente, é claro. Dos "grandes nomes" de fantasia e sci-fi, só um é mulher (Carolina Munhóz). Na camada dos "menos famosos", os homens também recebem mais atenção, e ao leitor menos atento pode até parecer que as mulheres não existem. Mas bem, elas existem sim. Há algum tempo, Camila Fernandes fez um post sobre isso e enumerou várias e várias mulheres escrevendo SFF em nosso país (aqui), e logo depois Rodrigo van Kampen fez outro mostrando todas as mulheres já publicadas em sua revista de SFF, a Trasgo (aqui). Ou seja, tem mulher escrevendo. Elas só não recebem atenção quase nenhuma. 

Bem, para ser sincera, escritor brasileiro já não recebe atenção quase nenhuma, não importa o gênero, mas quando se é mulher, a coisa piora. Uma parte disso, acredito, vem do quão machista o meio nerd é. Deem uma olhada nos grandes nomes da fantasia brasileira e vejam quantos têm ligação com esse "meio nerd". Não estou dizendo que eles não se esforçaram ou coisa do tipo - já vi alguns posts sobre a história deles e sei que não foi isso que aconteceu -, mas essa proximidade com o meio nerd ajudou? Claro. Agora te pergunto: você acha mesmo que alguma mulher vai se sentir bem vinda entre nerds homens? Não. Não vai. O ambiente nerd brasileiro é um dos mais tóxicos que já vi, e são poucas as mulheres que sobrevivem nele. 

Editoras também não ficam pra trás nisso. Não sou ingênua a ponto de pensar que editora alguma vai publicar qualquer livro que ela ache bom. Editora publica o que dá dinheiro, e para muita gente nesse meio o que dá dinheiro é homem. Veja bem: quantas mulheres foram publicadas aqui pelas editoras mais populares de SFF? Pela DarkSide? Pela Saída de Emergência? Pela Aleph? E as outras nem tão voltadas para SFF assim, quantos livros de fantasia/sci-fi escritos por mulheres elas publicaram em comparação com os escritos por homens? Intrínseca, Rocco e similares? 

Dando uma olhada rápida, dos quase 50 livros já publicados pela DarkSide, sete foram escritos por mulheres, e destes cinco são de SFF (os outros dois são sobre crime/policial). Na página de autores da Saída de Emergência, as coisas são um pouco melhores: de dez autores, quatro são mulheres. Ou, melhor dizendo, de onze autores, quatro são mulheres (Ilona Andrews, autora de Sangue Mágico, é na verdade um pseudônimo para a própria Ilona e para seu marido, Gordon, que escreve a série com ela). Dos quase 70 livros de ficção listados no site da Aleph, o incrível número de um (!!!) foi escrito por uma mulher, e essa autora foi a Ursula K. Le Guin, grande nome da ficção científica e fantasia. 

Eu poderia ir atrás dos dados da Intrínseca, da Rocco, etc, mas só por essas três editoras já dá pra ver a disparidade entre livros publicados escritos por homens ou por mulheres. 

Você pode estar pensando coisas tipo, e agora a gente precisa de cota pra mulher pra publicar livro???? Livro bom vende, não importa quem é o autor!! ou eu não me importo pro gênero do autor, quero mesmo ler uma boa história!!!, e bem, no mundo ideal a gente não precisaria de cotas pra nada, mas surpresa!, não vivemos no mundo ideal e a indústria de livros não funciona tendo como base a meritocracia. Não são os "livros bons" (aliás, isso já é bastante subjetivo) que vendem mais, são os livros mais bem divulgados, ou aqueles que tiram a sorte grande (vide Perdido em Marte). Você pode não se importar com o gênero do autor da história e, novamente, num mundo ideal isso seria maravilhoso, mas quando 7 em quase 50, 4 em 11 e 1 em quase 70 resumem suas chances de ler algo de uma mulher, as coisas não funcionam tão bem assim. Ler um "número justo" de mulheres é algo que tem que ser feito de modo consciente, com o leitor fuçando a internet atrás dos livros delas, e não apenas esperando pela bondade das editoras. Se você for esperar, melhor sentar, já que ficar em pé aumenta suas chances de criar raízes, lembra?

Vale falar também que várias autoras de SFF recebem prêmios lá fora ou chegam nas finais dos mesmos, suas obras são consideradas incríveis por críticos, resenhistas e leitores no geral, e ainda assim elas não são publicadas aqui. Exemplos: Kameron Hurley, N.K. Jemisin, Ann Leckie (essa a Aleph vai publicar, mas aparentemente está na chocadeira enquanto as crias de Star Wars continuam sendo paridas pela editora) (e não, nada contra Star Wars, mas meu Deus, hein), Kate Elliot, Elizabeth Bear, Nnedi Okorafor e tantas outras. Ou seja, não é mesmo por ser "bom" ou "ruim" que os livros dessas mulheres não são publicados aqui. 

Se você não quiser ler mulher e/ou não se importa com essa disparidade, tudo bem. Mas ela existe, é por isso que ano que vem estarei lendo apenas mulheres, e não, não só para dar a atenção que eu acho que essas autoras merecem, e sim porque eu tendo a gostar mais dos livros delas, ou pelo menos me aborrecer menos. Não que mulheres sejam mais originais e blá blá blá, mas as chances de eu ter que lidar com sexismo/homofobia/transfobia e similares nos livros delas é menor, tendo como base minha experiência nesses anos como leitora (nota: existe uma diferença entre um livro sexista/homofóbico/etc e um livro que retrata uma sociedade sexista/homofóbica/etc, okay? Okay). Tem homens que escrevem livros tendo o mínimo de consciência sobre essas coisas? Tem, claro (de cabeça consigo pensar no Daniel José Older, no Seth Dickinson, no Django Wexler, e vários outros), mas bem.... o número de mulheres que >eu< vejo se importando com isso é muito maior, e essas são coisas que também importam pra mim, então pra que ficar me flagelando? Não ficarei.

Já separei uma lista de livros de SFF escritos por mulheres ano que vem. Se alguém quiser alguma indicação, é só clicar aqui. Desses livros listados, apenas O Assassino do Rei, Seraphina, Graceling e O Rei Demônio foram publicados aqui no Brasil, e A Darker Shade of Magic será em breve também, pela Record (se não me engano). O resto só em inglês mesmo, infelizmente.

Para fechar o post, contarei um pouco da minha experiência lendo mulheres ou lendo livros sobre mulheres. Até eu ler As Crônicas do Mundo Emerso, lá quando eu tinha 10 ou 11 anos, todos os livros e a maior parte dos filmes que eu consumia eram sobre homens e por homens. A Garota da Terra do Vento foi a primeira história de fantasia que eu li em que a protagonista era uma mulher e, como descobri depois, a autora, Licia Troisi, escreveu a série (e as duas que vêm depois dela, Guerras e Lendas do Mundo Emerso) justamente porque ela estava cansada de ler livros sobre homens. Eu já queria ser escritora nessa época, e já tentava escrever o que viria ser a primeira versão de A Canção da Fúria, e como eu já disse aqui mil vezes, eu comecei A Canção da Fúria também porque estava cansada de livros sobre homens. Quando eu li A Garota da Terra do Vento, portanto, eu quase desisti de escrever. Sério mesmo. Ali estava uma história sobre uma garota guerreira que queria ser cavaleiro de dragão, exatamente meu tipo de fantasia preferida. Pra que continuar minha história quando algo tão legal assim já existia? 

E não, não falo isso de modo depreciativo. Eu estava aliviada. Existe um livro sobre garotas. Pronto. Não preciso fazer mais nada. E sim, isso soa muito ridículo, mas eu tinha 10 ou 11 anos em 2006/2007, e naquela época YA não era o que é hoje. Harry Potter já existia, claro, mas Crepúsculo nem tinha sido publicado ainda para causar o boom! dos livros YAs, então nada de livros sobre garotas (escritos por mulheres em particular) chegava aqui no Brasil, e os poucos que chegavam eram pessimamente divulgados. Hoje em dia garotas da minha idade que amam fantasia não têm mais que passar por esse perrengue todo só para ler uma história em que alguém como elas seja a protagonista, graças aos livros YA. Mas muitas dessas garotas acabam se virando para a fantasia adulta eventualmente, e o que elas têm para ler? As 5 de 50? A 1 de 70? As 4 de 11? Só?

A verdade é que se você quer ler livros sobre/por mulheres, você tem que aprender em inglês. Não deveria ser assim. Saber uma segunda língua não deveria ser requisito para esse tipo de coisa. E sim, eu sei que homens também escrevem sobre mulheres, mas estes são poucos (de cabeça só consigo lembrar de Mistborn dos livros de fantasia adulta lançados nos últimos anos aqui no país). E sim, eu também sei que mulheres gostam de ler livros com protagonistas masculinos, mas a maior parte delas, pelo que eu vi até hoje, também gosta de ler livros com protagonistas femininas e estas são incrivelmente raras de se achar aqui no Brasil. Escritas por mulheres então... A situação fica ainda pior.  

Então não, esse estresse todo em cima da visibilidade de mulheres na literatura especulativa não é só porque eu acho injusto ver tanta mulher escrevendo e recebendo migalhas de atenção enquanto homens se esforçam menos do que elas e ganham a refeição toda. É também pelas garotas que sim, gostam de YA, mas gostariam de ler algo adulto e até o fazem, mas sempre com a sensação de que poderia estar gostando mais, se identificando mais. Elas também merecem um espaço na literatura fantástica.

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2 comentários

  1. Adorei sua postagem! Parabéns!
    Amo As Crônicas do Mundo Emerso e também foi um dos livros que marcou não somente a mim, mas ao meu noivo, que também considera a saga da Licia a melhor que já leu até o momento. Homens também gostam de tramas sobre mulheres fortes, alguns autores apenas não entenderam isso até agora.
    Filhos da Lua: o Legado possui protagonista feminina, porém muitos de meus fãs mais entusiasmados são garotos também. ;)
    Quanto as mulheres autoras na literatura, você tem razão a atenção é menor, mas não é de todas as editoras, algumas estão buscando inovações e colocando diversas autoras em seus catálogos, mas o processo é lento.
    Um grande abraço!

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    1. Sim, muitas pessoas falham em perceber isso, e é algo tão simples, né? Quando eu li Crônicas do Mundo Emerso li na verdade em voz alta para meu irmão mais novo, que na época tinha uns 10 anos e ele adorou! Quase fiquei muda lendo os livros pra ele, mas no fim das contas valeu a pena.
      E as editoras menores geralmente são melhores com isso, e costumam publicar mais livros por mulheres. As grandes que são péssimas mesmo :/
      Abraço!

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