como não escrever um livro de fantasia dicas de escrita

Como (não) escrever um livro de fantasia I - escrita

18:25neo


Como mencionei alguns dias atrás, eu já tinha a ideia de fazer uma espécie de "guia" sobre como não escrever livros de fantasia há algum tempo e planejava usar vários e vários livros para exemplificar o que, na minha opinião, não deveria ser feito, mas eu meio que tenho que reler O Ciclo da Herança por motivos de ter lido essa série quando era muito novata em fantasia e precisar ter um olhar mais crítico dela agora. Resolvi, então, unir o útil ao talvez não tão agradável e fazer esse guia baseado (principalmente) n'O Ciclo da Herança, cujo primeiro livro, como muitos sabem, se chama Eragon.

Aqui no Brasil a reputação de Eragon não é tão ruim quanto lá fora, então muitos passam por essa série sem se dar conta da carga negativa que tanto seu autor quanto sua história carregam. Por muito tempo eu também não fazia ideia dessa má fama toda, mas depois de começar a acompanhar alguns blogs gringos acabei me dando conta do que o público estrangeiro realmente pensa do Ciclo da Herança de Christopher Paolini. Para quem não sabe, a série é acusada de plagiar elementos de diversos livros, tais quais O Senhor dos Anéis de Tolkien (nomes, raças e alguns pontos do plot), A Wizard of Earthsea de Ursula K. Le Guin (a língua antiga/ideia dos nomes controlarem as pessoas), A Roda do Tempo de Robert Jordan (até onde sei, o arc de um personagem) e Dragonriders of Pern, de Anne McCaffrey (o vínculo entre dragões e humanos), passando até mesmo pelos consagrados filmes de Star Wars (vários pontos do plot).

Eu acredito que Eragon acabou sendo essa misturada toda graças à idade do autor, que escreveu o primeiro volume com 15 anos e o lançou com 16. Estou prestes a completar 19 e posso ver com clareza que minhas histórias de 3 ou 4 anos atrás, quando eu tinha 15 ou 16, tinham muita coisa de O Senhor dos Anéis, minha série de livros favorita, não exatamente em questão de plot, mas sim de worldbuilding. Acho que se eu tivesse crescido no mesmo ambiente que Paolini, com muito mais livros de fantasia do que apenas O Senhor dos Anéis, minha história acabaria mais ou menos como a dele. Ou melhor, evoluiria depois, como ela de fato o fez (embora ainda esteja longe de ter qualquer tipo de qualidade), para algo mais singular e menos influenciado. O problema no caso do Paolini, é claro, é que Eragon não teve a chance de amadurecer e foi publicado logo de cara de modo independente com a ajuda do seus pais. Depois uma editora maior decidiu publicá-lo e então o estrago estava feito.

Sei que a maior parte dos que seguem o blog pelo Tumblr são mais ou menos da minha idade e da idade do Paolini quando ele escreveu Eragon, então me pareceu algo ideal usar essa história para construir essa série de posts. Eragon é recheado de erros de um típico escritor iniciante (como nós), tanto de construção de personagem (e seus relacionamentos) quanto de worldbuilding e escrita. E é desse último aspecto que irei falar nesse post inicial.

  • Escrita - erros no modo de descrever, narrar, dar informações e criar expectativa.
Descrição - interrupção da narrativa.
Um dos principais erros na hora de descrever que um iniciante pode cometer é tratar a descrição como algo completamente separado da história, um elemento à parte que só serve para uma consulta ocasional. E descrição não é isso. Descrição é o esqueleto da sua escrita, a ferramenta que você usa para moldar sua história e seus personagens que o leitor possa daí tirar suas próprias conclusões e interpretações. Mas muitos escritores se esquecem disso (ou nunca aprendem) e colocam as descrições jogadas no meio da narrativa, sem se importar com a quebra de ritmo que elas causam ou mesmo com sua falta de singularidade. Em Eragon isso acontece o tempo todo. Observe o trecho abaixo:
À sua volta doze Urgals moviam-se desordenadamente, empunhando espadas curtas e escudos de ferro redondos com símbolos pretos. Pareciam homens de pernas curvadas e de braços grossos e brutos, feitos para destruir. Um par de chifres retorcidos brotava acima de suas pequenas orelhas. Os monstros foram correndo em direção aos arbustos, grunhindo enquanto se escondiam. Logo, o barulho de folhas sendo agitadas parou, e a floresta ficou silenciosa de novo. (Eragon - Espectro do Medo, página 1).
As partes apenas em itálico desse trecho são a narrativa; as em negrito, a descrição. Note que há uma interrupção do que está acontecendo apenas para descrever a aparência física dos Urgals. Isso é tratar a descrição como um elemento separado da narrativa. É algo como ter dois livros - um para a descrição, outro para a narrativa - que foram comprimidos em um só, então os trechos de ambos se misturam de forma mais ou menos ordenada, mas nem de longe perfeita ou harmônica. Uma boa descrição deve fazer parte da narrativa, e o leitor deve ser capaz de assimilá-la sem sequer perceber que ela está ali. Ou seja, a não ser que não haja nenhuma ação iminente (como, por exemplo, quando seu personagem entra em um quarto ou uma pessoa entra em uma sala), a descrição deve ser invisível.

Conseguir escrever uma "descrição invisível" significa conseguir incorporá-la às ações dos personagens e, portanto, à narrativa. Uma dica para fazer isso é selecionar os elementos a serem descritos (no trecho ali em cima esses elementos são "pernas curvadas", "braços grossos e brutos", "um par de chifres retorcidos" e "pequenas orelhas", que são as características físicas dos Urgals) e então tentar encaixá-los nas já mencionadas ações e narrativa. Desse modo o leitor nem percebe que que está sendo informado sobre como os Urgals são.

Narrativa - sentenças curtas.
Outro erro que muitos iniciantes cometem muito é abusar das frases curtas. Isso pode não parecer muito grave, mas no resultado final acaba tirando muito do ritmo e da beleza da escrita de qualquer autor.

Já vi algumas pessoas compararem um livro ou trecho escrito em prosa à música, e a verdade é que há sim uma semelhança entre essas duas formas de arte. Para uma prosa bem feita são necessárias frases curtas, longas e as "mais ou menos"; é a alternância entre o uso de cada uma delas que cria o ritmo e a "música" da narrativa. Ou, como disse Gary Provost:
This sentence has five words. Here are five more words. Five-word sentences are fine. But several together become monotonous. Listen to what is happening. The writing is getting boring. The sound of it drones. It’s like a stuck record. The ear demands some variety. Now listen. I vary the sentence length, and I create music. Music. The writing sings. It has a pleasant rhythm, a lilt, a harmony. I use short sentences. And I use sentences of medium length. And sometimes, when I am certain the reader is rested, I will engage him with a sentence of considerable length, a sentence that burns with energy and builds with all the impetus of a crescendo, the roll of the drums, the crash of the cymbals–sounds that say listen to this, it is important.
Não vou traduzir para o português porque perde um pouco o sentido, mas resumindo: uma escrita com apenas frases curtas se torna chata e maçante; uma escrita com frases de vários tamanhos é harmônica, tem ritmo e muito mais chances de envolver o leitor no que está acontecendo na sua história.
O frio não havia feito mal ao bichinho, mas ele parecia assustado. Uma baforada de fumaça preta saiu de suas narinas. Eragon acariciou-o carinhosamente, sentou, encostando-se na árvore, e sussurrou baixinho. Ele ficou imóvel quando o dragão enfiou a cabeça embaixo do seu casaco. Depois de um tempo, saiu do abraço do rapaz e foi para o ombro dele. Eragon alimentou-o e então ajeitou os novos trapos em volta da cabana. Brincaram por um tempo, mas Eragon tinha de voltar logo para casa. (Eragon - O Despertar, página 42).
Eragon está lotado de trechos assim, sem "música" ou ritmo algum. É algo próximo de um relatório - fulano fez isso, depois isso. Cicrano fez aquilo outro. Beltrano ficou bravo com os dois - e não transmite emoção alguma para o leitor. É uma escrita estagnada e morta, e que leva facilmente ao tédio.

Um jeito simples de corrigir esse problema é simplesmente mesclar algumas das frases já existentes usando a vírgula ou o "e", ou ainda reestruturar outras de modo completo. É claro que se deve ter cuidado para não terminar com o problema inverso; muitas frases longas demais.

Informação - os perigos dos infodumps.
Infodump é um termo em inglês que significa "descarregar informação" e, como o nome diz, acontece quando o autor larga a informação no meio da narrativa na primeira oportunidade que aparece. Esse erro na entrega das informações se parece com o da descrição no meio da narrativa; ambos interrompem o que está acontecendo para entregar uma informação ou descrição que o autor acha que é importante o leitor saber.

Infodumps são a característica o escritor de primeira viagem. Na maior parte das vezes, com medo de que o leitor não entenda o que está acontecendo, o autor iniciante vai explicar todos os termos e acontecimentos na hora em que eles são mencionados pelos personagens. O problema, como já dito, é que isso interrompe a narrativa e portanto quebra o ritmo (além de subestimar a inteligência do leitor também). Eragon está cheio de momentos de infodump.

Exemplo 1:
- Tem - respondeu Roran. - Mas ele não é hábil o bastante. - Roran olhou para Eragon. Dando de ombros, ele acrescentou: - Dempton precisa das bases metálicas para o moinho dele. Ele está expandindo e me ofereceu um emprego. Se eu aceitar, terei de partir com ele quando for pegar as peças prontas.
Os moleiros trabalhavam o ano todo. Durante o inverno, moíam qualquer coisa que as pessoas levassem, mas na temporada da colheita, compravam grãos e vendiam como farinha. Era um trabalho duro e perigoso. Os operários freqüente-mente perdiam dedos, ou mãos, nas mós gigantes.
- Você vai contar isso a Garrow? - perguntou Eragon.
- Vou. - Um sorriso preocupante surgiu no rosto de Roran.
 (Eragon - Um Nome Poderoso, página 54).
Exemplo 2:
Eragon voltou ao bar com um gosto amargo na boca. Ele nunca havia encontrado alguém que favorecesse o Império e reprovasse seus inimigos. Havia um ódio do Império entranhado em Carvahall, a natureza disso era quase hereditária. O Império nunca os ajudou nos anos difíceis, quando eles quase passaram fome. E os cobradores de impostos eram impiedosos. Ele sentiu-se justificado ao discordar dos mercadores quanto à misericórdia do rei, mas especulou, de fato, sobre os varden.
Os varden formavam um grupo rebelde que invadia e atacava o Império constantemente. A identidade do líder deles era um mistério, como também quem havia formado o grupo nos anos seguintes à ascensão de Galbatorix ao trono há mais de um século. O grupo ganhava muita simpatia quando conseguia se livrar dos esforços do rei para destruí-los. Pouco se sabia dos varden exceto que se você fosse um fugitivo e tivesse de se esconder, ou se odiasse o Império, aí eles o aceitariam. O único problema era achá-los.
(Eragon - Histórias de Dragões, página 30)
Exemplo 3:
Sloan deu de ombros.
- Se não gostou da minha oferta, espere os mercadores chegarem. De qualquer forma, estou farto desta conversa.
Os mercadores formavam um grupo nômade de vendedores e artistas que visi-tavam o Carvahall toda primavera e todo inverno. Compravam o excedente que os aldeões e os fazendeiros locais produziam e vendiam o que eles precisavam para enfrentar outro ano: sementes, animais, tecidos e suprimentos como sal e açúcar.
Mas Eragon não queria esperar os mercadores chegarem. Ia demorar, e a sua família precisava de carne agora.
 (Eragon - Vale Palancar, página 13).
Todos os trechos em negrito são infodumps; um elemento é apresentado (o moleiro e seu moinho, os varden, os mercadores) e logo em seguida o autor separa um parágrafo inteiro para explicá-lo. Como eu disse, é um erro comum em um autor iniciante, e o melhor modo de evitar que ele aconteça é simplesmente confiar no seu leitor (que na maior parte das vezes vai ser inteligente o bastante para chegar a essas informações sem que o autor precise soletrá-la) e espalhar apenas algumas dicas na própria narrativa. Acredite: o mínimo de informação geralmente é o suficiente.

Expectativa - como (não) criá-la.
Em histórias de fantasia é muito comum que a expectativa tenha um papel importante, principalmente nas que envolvem uma profecia ou grandes guerras. Eragon tem essas duas coisas (e mais), mas peca gravemente na hora de criar a expectativa necessária para que o leitor fique curioso.
"Portanto, para abreviar bastante uma série de eventos complicados, houve uma guerra muito longa e sangrenta, pela qual ambos os lados lamentaram-se depois. No começo, os elfos lutavam apenas para se defender, pois eles se opunham a aumentar o conflito. A ferocidade dos dragões, no entanto, forçou-os a atacar para garantir a própria sobrevivência. Isso durou cinco anos e teria continuado por muito mais tempo se um elfo chamado Eragon não tivesse achado um ovo de dragão." Eragon piscou surpreso. "Ah, já vi que você não conhecia o seu xará", disse Brom.
- Não. - A chaleira soltou um assovio estridente. “Por que eu ganhei o nome de um elfo?”
(Eragon - Chá para Dois, página 48).
Sabe a frase em negrito? É uma tentativa de criar expectativa (ou melhor dizendo, curiosidade), mas que falha miseravelmente por um motivo: é uma tentativa bobinha. 

Usar o pensamento do personagem para fazer perguntas relativas ao plot revela amadorismo, já que essa "técnica" é basicamente um atalho para que não seja preciso nenhum tipo de construção de cena que realmente faça a pergunta em questão. É possível e até mesmo provável que Eragon tenha se feito essa pergunta? Sim, claro. Mas usar esse pensamento dele para fazer a mesma pergunta ao leitor - que a essa altura do campeonato deve estar se perguntando o mesmo - é um jeito até mesmo preguiço de fazê-lo. 
Merlock disse que a pedra era oca. Poderia haver algo valioso dentro dela. Mas eu não sei como abri-la. Deve haver algum bom motivo para alguém tê-la esculpi-do, mas seja lá quem tenha mandado a pedra para a Espinha não se deu ao trabalho de ir pegá-la ou não sabia onde ela estava. Mas não acho que um mago que tivesse poderes bastante para transportá-la não fosse capaz de reencontrá-la. Então, será que era o meu destino ficar com ela? Ele não conseguia responder à pergunta. Submisso a um mistério insolúvel, recolheu as ferramentas e voltou a colocar a pedra na prateleira. (Eragon - Um Presente do Destino, página 35).
Aqui acontece a mesma coisa do último exemplo. A parte em negrita é o pensamento de Eragon, usado mais uma vez para fazer perguntas sobre o plot ao leitor, com o bônus de dessa vez também oferecer conclusões a ele sobre os acontecimentos dos capítulos passados. Não me entenda errado; colocar essas conclusões e perguntas na própria narrativa é algo normal e que até deve ser feito, mas usar os pensamentos de Eragon para isso é quase como trapacear. Acaba soando muito infantil, ainda mais quando as conclusões e perguntas são sobre algo tão ponto-comum quanto o destino em histórias de fantasia.  

A dica para evitar passagens assim é clara: ao invés de fazer as perguntas ao leitor de modo tão direto, faça-o de modo mais sutil. Ou seja, na narrativa. Os pensamentos do seu personagem devem ser usados o mínimo possível, apenas para expressar coisas dele próprio, e não para propor questões e conclusões ao leitor.


Bem, é isso por hoje. Ainda estou no comecinho de Eragon, na página 85, então ainda tem muita coisa pela frente. Espero que tenham gostado e qualquer coisa é só comentar/mandar uma ask. Adiós!


arte por tatianamakeeva

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8 comentários

  1. Muito bem! As dicas são boas e claras, falando de pontos que de facto Eragon quis relatar ao contrário. Não sabia que ele tinha escrito o livro tão novo, e daí vejo a razão da escrita pouco polida. Enfim, pelo menos teve um filme feito (sem continuação, né) e agora deve escrever melhor, certo? Tenho de dar uma espreitadela.
    Gostei do blog!

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    1. Sim, ele escreveu a história bem novo. Se não me engano publicou com 16 anos mesmo, provavelmente não se preocupando em rescrever, procurar quem critique e coisas do tipo.
      Pelo que eu me lembro dos outros livros da série, ele melhorou um tico sim, mas faz muito tempo que li, então não tenho certeza. Mas pelo que eu soube ele está trabalhando em uma nova série. Quando lançar acho que vou acabar lendo, aí confiro isso.
      Obrigada!

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  2. Excelente texto! Levantou várias questões que todo escritor precisa estar atento.

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  3. Texto maravilhoso, vai me servir muito, procurarei aperfeiçoar minha escrita com suas dicas e vou me atentar melhor a elas. Muito obrigado <3

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  4. Sobre a parte das descrições eu considero que há casos e casos para se aplicar esse exemplo.
    Se for um personagem/ser que aparece várias vezes, as infos podem ser assimilidas pelos leitores se forem assim colocadas, mas se for algo ou alguém que só apareça uma vez por outra, acho que mais vale descrever tudo de uma vez, pois de outro modo o leitor não vai conseguir recordar de algo que foi mencionado uma vez vários capítulos antes.
    Acho que deve ter em conta isso, pois de outro modo pode confundir os escritores novatos.

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  5. Adorei o post. Só não concordo com a parte dos pensamentos da personagem. Eu gosto de ler histórias onde a personagem em questão não é um tapado que se surpreende com tudo o que acontece ao seu redor porque foi incapaz de concluir aquilo mais cedo. Acho que pensamentos não são meros acessórios, podem ser incorporados na narrativa assim como a descrição.

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  6. Eu acho que a "descrição" é algo muito difícil de encaixar na narrativa, é necessário descrever os personagens, afinal de contas a aparência deles ajuda a dar vida a eles.

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  7. Perdão mas, q bagagem o autor(a) de 19 anos de idade do texto acima tem para críticar o Cristopher Paolini??? Muitos dos livros citados neste texto q serviram de inspiração para o Cristopher tbm foram inspirados em outras obras, o próprio Senhor dos Anéis possui muito da sua inspiração vindas de lendas como Mitologia Nórdica e não já nada de errado nisso. Vc por acaso já leu o "Herói de mil faces" de Joseph Campbell??? Recomendo!!!!

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