rants literários

Rants litérarios: gênero importa?

15:23neo


Sim, gênero importa, obviamente. Deixe-me reformular a pergunta: gênero influencia como vemos um personagem? Ou ainda: se tal coisa acontecer com um personagem de gênero x ela vai ter um peso diferente do que se acontecer com um personagem de gênero y?

Na minha opinião, sim. Mas vamos por parte.

Venho querendo escrever esse post há um bom tempo, mas a preguiça, como sempre, me impediu. Porém, como a maior parte de vocês provavelmente já sabe, Stephenie Meyer, autora da série Crepúsculo, lançou uma nova versão do primeiro livro intitulada Vida e Morte, onde o gênero dos personagens está trocado. Bella agora é Beau e Edward se tornou Edythe, e segundo a autora ela escreveu essa edição especial para responder as críticas de que a Bella seria uma donzela em perigo:

"Minha resposta para essa questão sempre foi que a Bella é uma 'humana' em perigo, uma pessoa normal cercada por pessoas que são basicamente super-heróis e vilões. Ela também foi criticada por ser muito obsecada por seu interesse amoroso, como se fosse isso algo de garotas. Eu sempre disse que não faria diferença  se o humano fosse homem e a vampira mulher - ainda é a mesma história." (Stephenie Meyer). 

(Fonte).

O problema dessa explicação da Meyer é que, assim como ninguém escreve nada no vácuo (sem influências do mundo/de seu modo de vida/preconceitos/opiniões), ninguém também lê nada no vácuo. Tudo a que já fomos expostos influencia no nosso modo de interpretar livros, filmes, séries, etc, e isso inclui o modo com que personagens masculinos e femininos são representados. Quando leio um livro em que a garota principal vive a ser resgatada e não é ativa de forma alguma na história, a bagagem que eu carrego comigo faz com que eu veja isso de um modo diferente do que aconteceria se o protagonista fosse um garoto. 

Mulheres foram tratadas como donzelas em perigo por séculos e muito desse modo de pensar ainda está estranhado na nossa sociedade, onde elas ainda são vistas, muitas vezes, como o sexo frágil. Por isso que uma garota que precisa ser salva toda hora tem um peso e um significado muito maior do que um garoto. 

Pude ver isso com clareza ao ler The Mirror Empire, livro que já resenhei aqui para o blog. Nele, um dos reinos é matriarcal, um lugar onde as mulheres mandam e desmandam nos homens e os tratam como propriedade. Zezili é uma general e é casada com Anavha, e o relacionamento dos dois é bastante abusivo. O próprio Anavha meio que idolatra a Zezili e acha que não consegue fazer nada sozinho, exatamente como as mulheres costumavam ser descritas em livros mais antigos. 

Se Anavha fosse uma mulher? Eu a odiaria.

E se Zezili fosse um homem? Eu o odiaria ainda mais.

Mas com o Anavha sendo um homem e a Zezili sendo uma mulher? Não odeio nenhum dos dois. Na verdade, gosto do Anavha e simpatizo com a Zezili. Por quê?

Bagagem, é claro. Como eu disse lá em cima, não lemos nada em um vácuo. Já li e assisti dezenas de histórias em que a mulher não serve pra nada além decoração e em que o homem, geralmente seu marido, a trata como propriedade e é bastante abusivo. Esse cenário é tão comum que raramente o questionamos em livros de fantasia, por exemplo, mas para uma mulher - ou alguém criado como mulher - a repetição incessante de histórias onde a personagem feminina é tratada desse jeito chega a ser exaustante; passamos, portanto, a ver a mulher assim com ressentimento e a odiar ainda mais o homem, que muitas vezes ainda é tratado como herói.

Ou seja, ficamos cansados. Simples assim. 

As histórias em que a mulher é retratada como uma criatura frágil e incapaz de fazer qualquer coisa sozinha trazem memórias de uma vida em que raramente tivemos a oportunidade de vez uma mulher que não fosse assim; histórias em que o homem é abusivo/vê sua mulher como propriedade são mais uma adição à pilha de ah-mas-naquela-época-era-assim-mesmo-e-o-personagem-é-foda. Uma personagem feminina frágil e inútil, portanto, acaba reforçando um estereótipo bastante nocivo que ainda afeta mulheres no mundo todo, mas um homem frágil e inútil não faz isso. Nós, como sociedade, já sabemos que homens não são assim por natureza (afinal, eles são a maior parte dos heróis/vilões em qualquer tipo de mídia) e isso não pode ser dito da mulher. A sociedade ainda trata a mulher como ser inferior, mesmo que de modo sutil, ao considerá-la mais emocional, por exemplo (já que a falta de mulheres líderes, tanto em governos quanto e empresas, é muitas vezes atribuída ao "fato" da mulher não conseguir controlar suas emoções. Os homens, seres racionais que são - hahaha -, não teriam esse problema).

Mas isso não quer dizer que exigimos mais das personagens femininas do que dos homens? Afinal, eles podem ser frágeis e inúteis, mas aparentemente elas não. Isso não seria errado?

Eu acho que sim. Yeep, sei que é contraditório, e é justamente aí que a coisa pega: como evitar que essa bagagem de mulheres-são-inúteis me faça julgar uma personagem feminina com mais severidade? Honestamente, eu não faço ideia. Talvez seja uma boa separar as duas coisas, porém; sim, uma mulher frágil é algo que eu não gosto de ler, mas não, essa personagem feminina não merece meu ódio simplesmente por causa disso. 

(Muito disso também depende do quão bem a personagem é escrita, claro. Se ela for apenas o estereótipo, aí não tem como ajudar, né.)

Mas voltando para Bella e para Beau, não seria então errado chamar a Bella de donzela em perigo e criticar a história por ter uma personagem feminina que não faz muita coisa quando é provável que não fossemos fazer o mesmo com Beau? Talvez sim, talvez não. Mas a ideia de que ela seria apenas um "humano em perigo" e que seu gênero não importa? 

Essa está completamente errada.

Post interessante:

Você pode gostar de:

2 comentários

  1. Personagens femininas estereotipadas estão cada vez mais caindo por terra em livros ou filmes.
    Acredito também que o motivo seja porque as mulheres estão cada vez menos se vendo como "donzelas em perigo". Nós estudamos muito e trabalhamos muito. Sabemos que podemos conquistar tudo o que queremos e não precisamos depender de ninguém para isso. Acho que cada vez mais a mulher comum se vê como a heroína de sua própria história, de sua própria aventura no mundo real e isso a faz procurar na literatura mulheres fortes como ela, por isso personagens estereotipadas acabam por nos irritar muitas vezes ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, verdade. A mídia está aprendendo que mulheres aceitam cada vez menos serem relegadas a papéis menores e a estereótipos, então quando alguma personagem assim aparece é fácil reconhecer e, é claro, evitar.

      Excluir

Formulário de contato