3.5 estrelas fantasia

Resenha: O Aprendiz de Arquimago, Michael A. Iora

21:20neo

Série As Crônicas de Herannon: O Aprendiz de Arquimago |  ?
Michael A. Iora
★★★½

“Você foi honrado com a oportunidade de ser meu discípulo, uma honra que qualquer um dos acadêmicos de Everard desejaria, pois embora tenham bons mestres, eu estou muito acima de todos eles. O treinamento será muito mais árduo, não duvide disso, mas terá suas recompensas. Se sobreviver, digo, se resistir até o final, sob a minha orientação você virá a tornar-se um mago de altíssimo valor, admirado e invejado por muitos.”
Entretanto, o menino elfo descobre amargamente que tamanha honra não é concedida sem que um alto preço tenha de ser pago, e que simplesmente estar sujeito ao desagradável temperamento de seu excêntrico e arrogante tutor deve ser a pior prova que alguém pode ter de suportar. Não obstante, ele se vê obrigado a enfrentar não apenas um treinamento extremamente rígido e insano, mas também a saudade de sua mãe e um sentimento de urgência crescente.
Conseguirá o garoto conquistar sua tão desejada graduação, superando todos os desafios impostos e, pior, a crueldade e intolerância de seu próprio mestre? 

Esse livro me deixou bem dividida. Por um lado, eu gostei bastante da história e da escrita, mas, por outro, algumas coisas nele me irritaram bastante.

Vou tirar logo essas "coisas ruins" do caminho: um personagem gay (aparentemente, não é confirmado na história) extremamente estereotipado e outro personagem que passa o livro inteiro falando coisas machistas e nunca é condenado pela narrativa (muito pelo contrário).

Primeiro, o personagem gay: Miu'rjolië é a encarnação da trope Camp Gay, ou seja, é aquele gay estereotipado super feminino no seu modo de falar, maneirismos, modo de se vestir, aparência e interesses. Não há nada no personagem que fuja da trope, e ela é usada com um exagero absurdo. I mean:

Kyehntw'arthal negociou a quantidade e valor dos trajes com o homem de negro, enquanto o outro conferia e registrava as medidas dos elfos, tagarelando de forma incessante. Vedriny ria; Aglarion percebeu que os dois já se conheciam de longa data, mas em poucas rodadas ele mesmo já sabia de muito da vida do alfaiate; se chamava Miu'rjolië Trada, era filho de um elfo e da filha de um mercador, fora criado pela avó humana, costurava desde criança, adorava cores chamativas, sonhava em ser uma ninfa e morava sozinho com seu gato de estimação, que se chamava Senhor Lindinho. Era uma figura estranha e agitada, mas gentil e divertida.

Obviamente, muitos homens gays são femininos. Não há nada de errado nisso e, afinal de contas, a maior parte dos estereótipos possui um fundo de verdade. O problema, pra mim, está no abuso da trope e na falta de profundidade do personagem: Miu'jolië é um Camp Gay e nada mais. O que, por um lado, é compreensível já que ele é um personagem secundário, sem muita importância (se eu não me engano ele receberá mais atenção nos próximos volumes), mas quando o (até agora) único personagem gay é um estereótipo comum e manjado desses... Well, fica difícil. 

Ironicamente, Miu'jolië me lembrou o personagem gay do mais novo livro da Carolina Munhóz, Por Um Toque de Ouro, do qual só li o primeiro capítulo que foi disponibilizado online, e os personagens gays de novela. Ou seja, uma caricatura e nada mais.

Segundo, o Kyehntw'arthal, mestre do personagem principal, Aglarion, é incrivelmente machista. Nada de errado nisso, claro; personagens podem ser qualquer coisa. Meu problema aqui não é esse. Novamente pro pessoal do fundo: meu problema não é ele ser machista, e sim como a narrativa e o personagem principal normalizam o comportamento/fala dele como aceitável.

Kyehntw'arthal fala coisas assim:

– Ainda não entendeu? Você se preocupou em me insultar, alegando que nem mesmo a adorável companhia da doce Vedriny vale a sua convivência comigo; era a sua forma de dar densidade ao insulto. Mas ela é uma garota, veja bem, e sua mente feminina instintivamente deturpa os fatos [...]
– Não se afobe; você interpretou equivocadamente as minhas palavras. Francamente, parece uma garota – retorquiu o arquimago, com um suspiro. – Quero saber se você está preparado, física e emocionalmente. [...]
(Porque né, mentes femininas são irracionais e incapazes de entender as coisas, pfvr).

Essa última fala inclusive não fez sentido pra mim. Aliás, o próprio machismo do Kyenhtw'arthal (contar pra vocês que digitar o nome dele toda hora dá um trabalho...) não parece fazer muito sentido. Pelo que compreendi (e posso ter compreendido errado) a sociedade élfica pelo menos não parece ser sexista. Elfas podem fazer tudo o que os elfos fazem, até onde eu sei. Kyenhtw'arthal é meio-elfo, mas não sei se ele foi criado entre elfos ou entre humanos (os humanos aparentemente são sexistas sim, claro), mas se ele tiver sido criado entre elfos a coisa não faz sentido nenhum.

Certo. Kyenhtw'arthal é machista, como ficou evidente pelas falas acima. Até aí, sem problema. Mas a narrativa e o personagem principal vivem deixando tudo o que diz pra lá. Em um momento, uma mulher que Kyenhtw'arthal vive agredindo verbalmente (até aí nada demais tbh, porque Kyenhtw'arthal meio que agride todo mundo verbalmente) explica para Aglarion que ele supostamente a trata tão mal porque era apaixonado por ela e ela o rejeitou. Segundo a mulher, quando ele soube que ela estava apaixonada por outro, Kyenhtw'arthal lhe deu um ultimato no maior estilo "ou você casa comigo ou a desprezarei/amaldiçoarei pelo resto da sua vida".

A resposta de Aglarion? Bem:

Mas, mesmo que ainda fosse criança e não tivesse experimentado por si mesmo o caos dos sentimentos de amor, ele conseguia conceber a ideia e sentiu compaixão pelo mestre; havia milhares de canções que falavam de corações feridos, e as canções élficas tinham o poder de fazer o espectador experimentar as emoções traduzidas na melodia. Não podia culpar o tharalaist [mestiço de humano e elfo] por ser tão amargo na presença da feiticeira.

Porque né, tratar uma mulher como lixo só porque ela não aceitou seu ultimato é compreensível e digno de compaixão. Pffffff.*

Em outro momento, depois que Kyenhtw'arthal fala sobre como a mente de Vidriny, por ser feminina, deturpa os fatos instintivamente, Aglarion se põe a pensar sobre o ocorrido: 

"Tratar com mulheres é como caminhar sobre um lago congelado: você pode até ter sorte de conseguir atravessá-lo, mas nunca saberá se o próximo passo será seguro". Era realmente estranho; o arquimago não parecia ser a pessoa mais indicada a falar sobre tratos com mulheres... ou homens, ou reis, ou aprendizes...

Ou seja, ele até reconhece que o mestre dele é um babaca de marca maior e não exatamente um role model, mas a narrativa vai pra algum canto depois disso? Nope. Minha reação foi basicamente:



Porque, sinceramente, eu gostei bastante do Aglarion como protagonista. É muito fácil simpatizar com ele, e ele é, no geral, bem carismático. Mas que de vez em quando dá vontade de mandá-lo voando pra cochinchina, ah, isso dá. 

Ou seja, meu problema foi mesmo como a fala super machista do Kyehntw'arthal passa batida pela história. E se você acha que isso é normal/não é responsabilidade do autor condenar algo assim na narrativa, eu não faço a mínima ideia do que você está fazendo nesse blog. 

Enfim, falar assim sobre as "coisas ruins" do livro faz parecer que eu o odiei, mas na verdade gostei bastante de O Aprendiz de Arquimago. No início fiquei um pouco apreensiva, já que, como o nome deixa implícito, essa história conta sobre o treinamento de Aglarion com Kyenhtw'arthal, e esse treinamento dura anos e anos. Livros que saltam muito no tempo geralmente me desagradam porque ficam sem ritmo, mas O Aprendiz de Arquimago não tem esse problema; apesar de grande (mais de 600 páginas), você lê o livro rapidinho e em momento algum fica com a sensação de que as coisas estão acontecendo de modo lento demais.

A escrita é muito boa. O narrador, infelizmente, é omnisciente, o que não é muito minha praia, mas nem isso me impediu de aproveitar a história. Os personagens também são muito bons; tirando os mais secundários (como o pobre Miu'rjolië), todos têm personalidades bem definidas e são bem construídos. Meu favorito foi o próprio Aglarion, apesar de, como já foi dito lá em cima, ele dar uma de aprendiz machista de vez em quando. Vedriny também me agradou bastante, e espero que ela continue a ser um personagem recorrente na série.

Esse primeiro volume me pareceu bastante introdutório (o que acho normal, já que aparentemente essa série vai ser bem grande), e o final deixa claro que as coisas ficam mais interessantes nos próximos livros. Para falar a verdade, eu esperava que algumas coisas fossem respondidas nesse primeiro volume mesmo (o que realmente aconteceu no prólogo? Por que Aglarion quer tanto ser um aventureiro?), mas né, parece que terei que esperar um pouco pra isso.

Enfim, O Aprendiz de Arquimago é um livro que recomendo pra todo mundo que gosta de uma boa história de fantasia, mas as coisas que mencionei no início da resenha incomodaram sim. Não o suficiente para eu abandonar a série, coisa que fiz com O Olho do Mundo, que é machista do jeito que eu acho mais bizarro e que muita gente vê como inofensivo: considerando as mulheres como seres impossíveis de serem compreendidos, e muitas vezes irracionais, e sim, isso mesmo com a série tendo personagens femininas importantes. Confesso que As Crônicas de Herannon pode ter o mesmo destino, mas por enquanto dá pra aguentar. 

3.5 estrelas para O Aprendiz de Arquimago. Na verdade, uma nota mais correta seria 3.80 ou 3.90, algo bem próximo mesmo de 4.0.

Spoilers agora!!!


* Depois Kyenhtw'arthal desmente a história. Na verdade, foi a mulher que tentou seduzi-lo e ele que a recusou, o que a deixou revoltada com ele. A reação de Aglarion, no entanto, continua valendo, e acho que não preciso dizer que mulher tendo que aguentar homem que a trata como lixo por causa de uma rejeição geralmente não termina bem em nossa sociedade.

Outra coisa: não vi o personagem traidor até o momento em que, bem, ele (bem, ela) traiu Aglarion & cia, mas nossa, o motivo dela foi muito ridículo. Aqui é gosto pessoal mesmo, porém. 

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