girl on girl hate rants literários

Rants literários: Girl on girl hate

19:49neo


Até a última versão da minha história, todos os reinos fictícios do mundo que eu criei, Arzanael, tinham reis. Isso, é claro, é fruto de sexismo internalizado, o velho padrão homens-no-poder que na minha história faz ainda menos sentido, já que boa parte desses reinos não faz distinção entre gêneros. Na versão que estou prestes a começar, portanto, decidi mudar. Os dois reinos élficos, Narovia e Davendra, ganharam rainhas, Vittoria e Anphea respectivamente.

Para falar a verdade, Vittoria já existia, mas vivia na sombra do rei, que nessa nova versão está morto há tempos (os anciões que me acompanham desde a SW talvez se lembrem dela, que se chamava Naëmah). A personalidade dela foi tão alterada que nada ficou da velha Naëmah e isso foi uma evolução e tanto. Naëmah era um tanto passiva demais, percebo agora, e não fazia muita coisa além de concordar com o marido o tempo todo.

arte por hgjart
Vittoria e Anphea são completamente diferentes. Vittoria viveu boa parte de sua vida em guerras e perdeu o marido e um de seus filhos nela. Ela também gosta de poder; ama liderar e ama ser a rainha, e é muito boa no que faz. Foi graças a ela que Davendra sobreviveu às guerras, e hoje em dia ela é adorada por seu povo como nenhum outro rei ou rainha antes dela o foi, o que, é claro, ela adora. Ela é um tiquinho insana, verdade seja dita, e depois de deixar de ser Naëmah, se tornou uma das minhas personagens favoritas da série.

Já Anphea não nasceu para reinar e nem foi treinada para isso. Sendo a mais nova de quatro irmãos e todos, inclusive ela própria, sendo imortais por serem elfos, ninguém nem imaginava a possibilidade de ela se tornar rainha, ainda mais considerando que todos (menos ela) tinham filhos ou filhas. Mas a guerra que dá início à história acabou fazendo dela a única herdeira do trono de Narovia, e assim Anphea teve que se virar para governar um reino que ela jamais quis.

Desde que terminei de escrever o conto do Amigo Secreto (mais sobre isso depois!), venho trabalhando na minha história de novo. Ainda não a comecei de fato; estou organizando o plot, e com isso acabei percebendo que Anphea e Vittoria se encontrariam em um dos livros. Tratei de pensar em como as duas se relacionariam. Sendo as governantes dos últimos reinos élficos conhecidos, o que pensariam uma da outra? Já teriam se encontrado antes? Como se tratariam?

A resposta para essas perguntas veio em minha mente de imediato. 

Elas se odiariam.
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arte por ladypingu
Quem se lembra do mito de que garotas vão sempre odiar outras garotas?

Afinal, é claro que duas mulheres (ou garotas) no mesmo "nível" se odiariam, mesmo sem razão alguma para tal coisa. Como não? Garotas estão sempre boicotando umas as outras, né? Estão sempre com inveja da Cicrana por ser mais bonita ou mais inteligente, sempre praticando slutshaming em qualquer uma que use um short ou saia curta demais, não é? Amizade entre garotas é algo traiçoeiro, óbvio.

Ou pelo menos é isso que nos dizem o tempo todo. E isso é sexismo internalizado.

Todo mundo é ensinado a ser o melhor desde pequeno, não importa se garoto ou garota. A diferença está no modo com que isso é feito. Garotos são ensinados a serem os melhores para eles mesmos. Se eles forem isso, isso outro e aquilo lá, serão homens de sucesso e garotas se jogarão aos seus pés. Garotas, por outro lado, são ensinadas a serem as melhores para outros - se elas forem isso, isso outro e aquilo lá, outros as aprovarão, em especial garotos. Isso, isso outro e aquilo lá geralmente sendo beleza, polidez e, de certa forma, inteligência.

Garotos ganham "prêmios" se forem os melhores. Garotas ganham a oportunidade de serem escolhidas por alguém.

Ou seja, enquanto o sucesso de garotos é medido por sua própria capacidade de ser bom (na maior parte das vezes), o das garotas envolve bem mais a capacidade de outras garotas serem boas também. Se uma já é bonita, educada e inteligente, todas as outras são rebaixadas. A garota bonita, educada e inteligente se torna o inimigo.

Você já deve ter visto algo assim em livros, filmes, etc. A garota popular e bonita que menospreza todas as outras, de modo bem mais agressivo do que o garoto popular e bonito, que às vezes pode menosprezar os outros também. Com garotas, a coisa se torna uma competição, mesmo quando a maior parte não quer participar. A sociedade cobra o tempo todo, seja bonita, seja educada, e a garota popular e bonita é um lembrete daquilo que o resto está sendo privado: um lugar ao sol. Aprovação. 

E não foi isso que nos ensinaram desde pequenas, que a aprovação de todos era o máximo que poderíamos alcançar?
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Há o movimento contrário, claro. Mas um movimento que falhou - e falha até hoje - miseravelmente.

A garota popular e bonita se tornou o símbolo da futilidade. E aqui sou obrigada a repetir: sexismo, dessa vez não tão internalizado assim. A garota popular e bonita representa o pintar as unhas, o pentear o cabelo, o se arrumar; representa gostar de gastar dinheiro em roupas, em se preocupar com a aparência, em querer ser bonita; representa o feminino. E o feminino vem sendo demonizado há milênios.

arte por sygnin
Mais uma vez, você já deve ter visto algo parecido, principalmente se for leitor de YA. A garota principal é quase a garota que não é como todas as outras, e portanto a garota que rejeita o feminino e é glorificada por isso. A garota que não é como todas as outras tem todas as características consideradas dignas; não se importa tanto com a aparência, não liga para essas baboseiras de unha pintada e cabelo arrumado, não gasta tempo em frente ao espelho, não lê shoujo, não gosta de romance. Uma garota considerada boa, e boa por ter características supostamente masculinas.

Mas é claro que apesar de não se importar com a aparência, a garota que não é como todas as outras sempre será linda, mesmo que ela própria não saiba disso. Essas garotas boas nunca são feias; se forem, são tomboys demais, não são mulheres de verdade. Estão erradas também.

Fica-se então entre a cruz e a espada. Devemos nos importar com a aparência, devemos abraçar coisas que talvez gostemos, como pintar as unhas e comprar roupas, mesmo que isso signifique ser a garota que é como todas as outras? Mesmo que isso signifique ser desprezada por fazer exatamente o que fomos ensinadas a fazer desde pequenas?

Ou talvez seja melhor mesmo abdicar de tudo isso, mesmo que gostemos de fazer essas coisas no final das contas. Talvez seja melhor agir mais como o estereótipo do garoto; ler shounen ao invés de shoujo, gostar de filmes e livros de aventura e video games, rejeitar essas frescuras de se importar com roupa e aparência.

E então esperar que sejamos bonitas o suficiente para sermos aceitas assim.

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arte por david-willicome
O girl on girl hate está em todo canto, mas na literatura é estupidamente forte. As garotas que não são como todas as outras odiarão as garotas populares porque elas ainda são vistas como o ideal, mas serão escolhidas pelo garoto no fim do dia se forem bonitas o suficiente (e elas sempre são). Se duas mulheres são poderosas, elas serão rivais. A outra sempre será vista como uma ameaça ao seu posto, ao seu poder. À sua oportunidade de ser escolhida por alguém.

Já devo ter falado por aí, mas comecei a escrever por sentir falta de garotas nos livros e filmes de fantasia que assistia. Minha protagonista é, portanto, uma garota. E por um ano e meio, lá em 2007-2008, ela foi praticamente a única garota "boa" e importante da história inteira. Mas após ler vários e vários livros YA, comecei a perceber um padrão: tirando a principal, todas as garotas da história eram colocadas para baixo, por diversos motivos. Por serem fúteis (femininas), por serem "vadias" (slutshamming), por se arrumarem demais (femininas de novo), e assim por diante. Era quase como se o autor estivesse desesperado para provar que sua protagonista era sim boa, era sim uma pessoa digna. E o único modo de provar isso, aparentemente, era eliminando as concorrentes. 

Era fazendo com que a protagonista fosse a única disponível para ser escolhida.

O marido de Vittoria e a versão masculina de Anphea eram grandes amigos.


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Hoje em dia, a amizade entre duas garotas é o que move minha história. É o motivo de ela acontecer, é o que faz ela se desenrolar e o que vai levá-la até o seu fim. A primeira versão, lá de 2007-2008, é completamente diferente da de hoje por esse motivo. 

arte por brookegillette
Mas nem assim, nem mesmo fazendo o enredo de uma série inteira girar em volta da amizade de duas garotas, consegui me livrar do sexismo internalizado. Da noção de que garotas vão odiar outras garotas sem motivo algum além do medo de terem sua oposição ameaçada. E a posição de Vittoria e Anphea estaria ameaçada, não é? Como poderia Anphea ocupar o cargo de mulher mais poderosa de Arzanael se Vittoria está por aí governando o maior exército élfico das terras conhecidas? Como poderia Vittoria ter paz com Anphea sempre por perto para lembrá-la que ela não é a única com poder?

O interessante, porém, é que não consigo imaginar nenhuma das duas se sentindo ameaçada pelos reis dos outros três reinos que aparecem na história. Por quê? Por que se importar apenas com a outra mulher?

Como já dito lá em cima, mulheres são ensinadas a serem as melhores para serem escolhidas. E isso quer dizer que nunca há espaço o suficiente para mulheres; afinal, para que precisem ser escolhidas, o número de vagas deve ser limitado. Uma sempre tem que cair para que a outra possa ter o seu lugar.

Isso é ainda mais verdade em livros de fantasia. Quando há uma mulher com poder, geralmente é apenas uma. As outras são colocadas para baixo para que a escolhida possa ter seu lugar ao sol. A ideia de duas ou mais mulheres poderosas convivendo em harmonia muitas vezes soa bizarra justamente por estarmos acostumados a ver apenas uma alcançando esse objetivo. Se houver duas, isso quer dizer que não há uma mulher com poder ainda; há duas lutando para ter poder, poder que só terão quando a outra for vencida.

Homens também lutam entre si nesse sentido, claro, mas há mais espaço para eles. Suponhamos que existam cinquenta homens e cinquenta mulheres, e dez cargos de poder. O lógico seria que cinco ficassem para os homens e cinco para as mulheres, e assim cada grupo disputaria entre si por cada cargo, mas a verdade - ou o que nós pensamos ser verdade - é bem diferente. Os cinquenta homens disputam nove cargos. As cinquenta mulheres disputam apenas um.

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É por isso que a literatura é tão povoada por girl on girl hate. O mundo real não chega a ser tão ruim assim (na minha experiência, não é nem de perto), mas tal coisa existe sim fora dos livros. E essa realidade só vai mudar se amizade entre mulheres deixar de ser algo invisível à nossa volta. Não digo na vida real, já que tenho mais amigas do que amigos e sei de várias garotas que estão na mesma situação, mas nos livros, filmes e séries. Quantas vezes não vimos a amizade entre homens glorificada? Não importa o gênero do livro/filme, os bromances da vida estão sempre presente. Em fantasia então, nem se fala. Quantas vezes não vimos soldados que morreriam um pelo outro, ou generais que fariam tudo por seu rei não apenas por lealdade, mas por amizade?

Mas e os sismances? Onde estão as rainhas e suas amigas? As princesas e suas damas de companhia? Onde estão as garotas pobres que confiam umas nas outras pra tudo? Onde estão as mulheres que morreriam uma pela outra sem hesitar?

Sempre zoam mulheres por andarem juntas o tempo todo, mas todo mundo escolhe ignorar o porquê de fazermos isso: é mais seguro. Uma mulher sozinha é muitas vezes um alvo em potencial (para homens, principalmente), mas um grupo de mulheres pode se livrar de um perigo desse tipo com facilidade. E ainda assim quando tais grupos são representados em livros e filmes, é sempre para fazer piada. É sempre apenas para zombar da maquiagem retocada no banheiro e a suposta incapacidade de ser independente, a tal da necessidade de pertencer a um grupo. É como se a amizade entre mulheres fosse sempre isso: algo fútil, algo a ser zombado.

Mas não é.

Hoje em dia fujo de livros e filmes que retratem mulheres como inimigas. Ignoro sinopses que indicam uma garota que não é como todas as outras, porque, sério, tal coisa não existe. Nenhuma garota é como a outra, assim como nenhum garoto é como o outro, mas aposto que você nunca viu um livro descrevendo um garoto como diferente dos demais. Garotos não precisam disso. O normal deles é aceito. O nosso não.

arte por hello-ground

E sim, Vittoria e Anphea não se odeiam mais. Na verdade, são grandes amigas.

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2 comentários

  1. Oi. Tipo super ameeeeeei o seu post. Falou a mais puuuuura verdade (esse tb é um dos motivos de eu detestar comédias romanticas e Naruto pela rivalidade feminina demonizada) e olhando por esse quesito acho que vou passar é rindo no quesito feminismo/representatividade no livro que estou escrevendo: tem mulheres, gays, lesbicas, bi, gente de cor, gente gorda, assexuados, negro. Inclusive tem ate um negro pobre hetero, uma mulher bi pobre e um gay LIDER como protagonista de FANTASIA. Se tem mulher se odiando? Pode ate ser mas por rivalidade entre povos (o mesmo entre homens). Se tem slutshaming? Bem cada povo tem uma forma de lidar com sexo e fqzem ate piadas uns com outros (mas nao por ser homem ou mulher).

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  2. Sem falar que pelo fato de ser um mundo completamente novo eu pensei assim: pq nao torna lo mais igualitario e menos machista? (coisa q infelizmente tolkien e infelizmente george martin nao fizeram). Existe preconceito e opressao? Sim, mas por ser de um determinado povo e nao por nascer mulher, negro ou gay. Tem mulher complexas e muitas no poder, negro sendo tratado de igual pr igual (tem ate uma mulher negra e lesbica como lider religiosa!), gays complexos e normais (tem ate um deus q é homossexual e isso é tipo bem normal).

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