diversidade homofobia racismo

Rants literários: o problema dos cookies de diversidade

13:55neo
por mariannewiththesteadyhands

Quem acompanha o blog há algum - ou quem me vê metida em discussões pelo Facebook - já deve ter percebido que representatividade é muito importante pra mim. Comento sobre isso aqui direto, e geralmente abordo várias coisas: sexismo e o modo como mulheres são retratadas em livros, racismo e personagens de cor, homofobia, transfobia e lesbofobia e personagens LGBTQ+, e por aí vai. Sempre comentei a falta dessas minorias (e de mulheres) em livros e provavelmente continuarei a fazer isso enquanto resenhar, assim como o resto da comunidade que se importa com esses assuntos, mas muita coisa ruim pode surgir dessa conversa, e uma das que mais me dá vontade de cometer um assassinato é bem simples: os cookies da diversidade.

rants literários

Rants litérarios: gênero importa?

15:23neo

Sim, gênero importa, obviamente. Deixe-me reformular a pergunta: gênero influencia como vemos um personagem? Ou ainda: se tal coisa acontecer com um personagem de gênero x ela vai ter um peso diferente do que se acontecer com um personagem de gênero y?

Na minha opinião, sim. Mas vamos por parte.

rants literários

Rant literário: Por que homens têm tanta dificuldade em escrever mulheres?

18:37neo

Podem me chamar de lenta, mas passei boa parte da minha vida - e ainda, boa parte da minha vida após começar a escrever - sem ter a mínima noção de que para homens era tão difícil escrever mulheres. Sei que não são todos, claro, mas é impressionante o número de escritores do sexo masculino que comenta o quão difícil é escrever uma personagem do sexo feminino, principalmente em gêneros como a fantasia e a ficção científica. É só dar uma olhada nas entrevistas de autores que tenham personagens femininas de relevância em suas histórias; boa parte delas vai incluir uma pergunta sobre a tal da dificuldade que homens sentem ao fazer tal coisa. Mas olhe para as entrevistas de autoras que têm personagens masculinos de importância em seus livros e, bem, raramente a pergunta equivalente é feita a elas.

Isso não quer dizer, é claro, que não existam mulheres que tenham dificuldade em escrever homens. Já encontrei várias, mas mesmo assim as dúvidas delas não eram as mesmas dos homens que tinham dificuldade em escrever mulheres. Enquanto elas se perguntavam, e se meu personagem masculino acabar muito sensível? eles se questionavam, e como diabos uma mulher pensa?

rants literários

Rant literário: preconceito contra o escritor brasileiro

17:45neo

Esse é um assunto que dá muito o que falar por aí e um que eu venho querendo discutir aqui no blog há séculos, coisa que até agora nunca fiz por preguiça mesmo. Porém, nos últimos tempos tenho ouvido/visto mais e mais discussões sobre o preconceito com o escritor brasileiro, principalmente o escritor brasileiro de fantasia e ficção científica, e bem, há algumas coisas que eu gostaria de falar sobre isso.

Antes de mais nada, é bom lembrar que eu escrevo. Meus posts aqui no Chimeriane/AP são basicamente apenas resenhas e a ocasional dica de escrita hoje em dia, mas lá no início minha motivação para criar o blog foi justamente a ideia de compartilhar as dicas que eu achava pela internet/que eu mesma bolava enquanto eu escrevia meu primeiro livro. Tal primeiro livro se encontra jogado na gaveta e no momento estou plotando o novo primeiro livro, por isso que as coisas acabaram mudando tanto de foco.

Enfim, sou escritora, mas tenho sim um certo preconceito com literatura fantástica brasileira. Antigamente não tinha; o preconceito veio depois de algumas experiências muito ruins que tive e que sangraram minha pobre carteira. Hoje procuro ler o primeiro capítulo de qualquer livro brasileiro que me interesse antes de comprar, já que a maior causa de frustração que tenho com essas obras é justamente a escrita. Se a escrita for razoável e a história aparentar ser legal, eu compro. Se não tem o primeiro capítulo disponível para leitura no blog/site do autor... Eu me esqueço que o livro existe. Ou melhor, fico esperando por alguma oportunidade pra ler o livro de graça (tipo promoção na Amazon ou coisa parecida). Se essa oportunidade nunca aparecer... Well, adeus, livro.

Tenho preconceito com livro brasileiro? Sim, tenho. Acho, portanto, que escritores nacionais são piores que estrangeiros? Hm, não exatamente.

Como assim?

Já comentei isso nos grupos do facebook da vida, mas o escritor estrangeiro tem muita vantagem sobre nós, escritores brasileiros. A comunidade de livros/escrita internacional (aka dos Estados Unidos e/ou Inglaterra) é muito maior e mais desenvolvida do que a brasileira, e isso os ajuda muito. Por exemplo, lá existe quase uma "cultura de escrita"; afinal, eles estão acostumados a serem os criadores dos best-sellers mundiais e das tramas premiadas de Hollywood. Ser escritor pode até não ser a carreira que os pais americanos querem para seus filhos, mas a profissão não é vista com o grau de absurdidade com que os brasileiros a enxergam. Americanos que querem ser escritores têm para onde se dirigir para ver como as coisas são feitas; o número de workshops, grupos de escrita e similares lá nos Estados Unidos é grande. Aqui no Brasil a gente está apenas engatinhando. Lembro de querer ser escritora desde os meus sete, oito anos de idade, mas foi só com catorze, quinze anos que encontrei uma espécie de comunidade de escrita (A Só Webs no Orkut, que era, de fato, uma comunidade) e isso apenas online. Na "vida real", porém, isso nunca aconteceu. A internet é a única razão de eu ter começado a me tornar uma escritora melhor.

E, é claro, lá fora é possível se formar em Escrita Criativa. Aqui a gente tem um ou outro curso voltado para isso, mas lá eles têm uma faculdade. Ou seja, as coisas estão em níveis bem diferentes. 

A competitividade entre eles é bastante acirrada também e isso os ajuda. Para ter seu livro publicado de forma tradicional lá nos EUA, por exemplo, você precisa de um agente literário se quiser ter uma chance com as editoras maiores (as menores geralmente aceitam receber manuscritos de escritores sem agente) e para conseguir um agente você tem que convencê-lo de que sua história é boa o suficiente/fácil de vender. Você tem que mandar uma query letter para os agentes que você acha que se interessarão pela sua história e essa query letter - basicamente uma sinopse da sua história, embora alguns agentes também peçam um resumo - tem que ser perfeita. Agentes literários lá fora recebem centenas de query letters; a sua tem que ser o melhor possível se você quiser ter uma chance de ter seu manuscrito (ou parte dele) solicitado por alguém. E mesmo se você conseguir que algum agente solicite seu livro, ele ainda tem que gostar dele (óbvio) e se o início não for bom o suficiente o agente provavelmente o deixará de lado e partirá para o próximo. 

E aí quando você finalmente consegue um agente ele provavelmente te dará várias dicas/sugestões de alteração para sua história. E só depois é que ele vai tentar vender seu livro para uma editora. Muitos livros conseguem agentes, mas encalham e jamais são escolhidos por alguma editora.

Em resumo, é difícil pra caramba vencer a concorrência lá fora e por isso eles estão sempre buscando melhorar suas query letters, sua escrita, sua história, etc, de um jeito que aqui a gente às vezes não faz. Afinal, a maior parte de nós não tem o conhecimento que os escritores americanos adquiriram através de workshops, cursos e até uma faculdade, o que nos deixa até perdidos na hora de reconhecer o que precisa ser melhorado nos nossos livros. E bem, também não temos o "estímulo" que eles têm; poucas editoras aqui aceitam livros brasileiros para publicação, e dessas poucas menos ainda são grandes. A opção mais comum para o escritor brasileiro é a auto-publicação, e na auto-publicação o autor não tem a editora e/ou seu agente para lhe ajudar a tornar o manuscrito o melhor possível. A coisa toda tem que ser feito por ele mesmo (e por profissionais que ele pode escolher contratar).

Em conclusão, o escritor brasileiro não é, às vezes, pior do que o estrangeiro porque ele é brasileiro. Temos muito menos educação na área e muitas vezes isso fica bastante óbvio nos livros que são publicados por aí. Escritor demais acaba publicando seu livro na Amazon sem pensar em fazer revisão ou reescrita e sem se tocar sobre construção de personagem, ritmo, etc, simplesmente porque não é algo que ensinado pra gente em canto algum. Aí o leitor acostumado com os livros estrangeiros - que passaram por Deus sabe quantas reescritas, revisões, reestruturações, etc - acaba torcendo o nariz para as obras nacionais. 

É como se nós publicássemos a primeira ou segunda versão da nossa história enquanto os gringos publicam a sexta ou sétima. É óbvio que, na maior parte das vezes, o que eles produzem vai ser melhor em pelo menos termos técnicos. 

O que fazer então? Correr atrás do prejuízo, é claro. Vejo muito autor falando que não vende porque o brasileiro tem preconceito contra livro nacional, mas André Vianco, Carolina Munhóz, Eduardo Spohr e outros estão aí pra provar que é possível sim conquistar o público. Há preconceito? Claro. Como eu disse lá em cima, eu mesma tenho um certo preconceito com livros brasileiros. Mas essa não é, nem de longe, o que faz com que tantos de nós acabem esquecidos nas partes mais escuras da internet (ou da livraria). A falta de exposição é, na minha opinião, a maior culpada pela invisibilidade de nossos escritores, mas toda essa falta de conhecimento sobre o processo de escrita também é bastante importante. Vários escritores brasileiros têm sim ideias excelentes, mas a história se perde na execução ou na pouca divulgação/exposição.

Vale falar também que a própria profissão aqui é bastante romantizada. Estamos acostumados com a ideia (absurda) do escritor que vive tomando café e que derrama seus sentimentos na página após passar noites sem dormir e coisa e tal. Um monte de bobagem, é claro. Arte alguma vem apenas de sentimentos e blá blá blá; há técnica pra tudo. Claro que essas técnicas/regras não precisam ser seguidas ao pé da letra, mas, como dizem por aí, você precisa conhecê-las antes de quebrá-las. Já vi muita gente que acha que escrever é uma arte sublime e que qualquer tipo de pensamento lógico na hora de construir o texto/personagens é uma afronta ao que se está escrevendo.

Aí fica difícil, né?

Enfim, escritor brasileiro, o preconceito não é a maior razão para seu livro estar encalhado na Amazon/livraria. É só dar uma olhada no Skoob; 95% das resenhas de qualquer livro, nacional ou não, são positivas. O maior problema que temos mesmo é o de ser visto pelos leitores e, logo depois, o dessa falta de conhecimento/educação sobre a escrita. Culpar o público é colocar a culpa no lado errado, quer você goste disso ou não. 
rants literários

Rants literário: Realismo em livros de fantasia

15:35neo

Vou discutir diversidade (ou a falta dela) nesse texto. Se não for seu tipo de assunto, aconselho não ler. Also: TW para menção de estupro e violência sexual.

Como praticamente todo mundo já sabe, o episódio da semana passada de Game of Thrones foi muito criticado por ter mostrado Sansa Stark, uma das personagens principais da série, sendo estuprada por Ramsay Snow/Bolton, seu marido, enquanto Theon Greyjoy assistia. Tal coisa não acontece nos livros. Lá quem é estuprada e quem se casa com Ramsay é Jeyne Poole, amiga de Sansa, o que pra mim é ainda pior, já que na série Sansa pelo menos tem a chance de ter algum desenvolvimento baseado na violência que ela sofreu, enquanto Jeyne Poole é uma ninguém e Martin provavelmente não vai lhe dar desenvolvimento nenhum, fazendo de seu estupro o motivo para Theon tomar prumo na vida. (Women in refrigerators, hm?)

Não é a primeira vez que Game of Thrones é criticado por mostrar violência contra mulheres. O mesmo aconteceu quando Ros foi assassinada com uma flechada no peito e outra na vagina, quando Talisa morreu com uma facada na barriga (e ela estava grávida), quando Cersei foi estuprada por Jaime na temporada anterior ou ainda quando fizeram a primeira noite de Daenerys e Drogo outro estupro (pra mim é estupro nos livros também, já que Dany tem 13 anos, mas na primeira noite ela aceita sim fazer sexo com ele - depois disso já é outra história). Os escritores da série acharam necessário adicionar essas cenas por sabe-se lá qual motivo. Muitos dizem que as críticas são mimimi e que na Idade Média as coisas eram assim mesmo, mas o engraçado é que essas pessoas sequer percebem que se a série é baseada na Idade Média o livro também é, e lá a Cersei sendo estuprada, a Ros morrendo de forma horrível e a Talisa sendo morta com um golpe na barriga não são coisas que acontecem (até porque a Talisa - que tem outro nome nos livros - não morre). Logo, essa desculpa de mimimi era assim na Idade Média!!! cai por terra (não vou nem discutir o fato de que Westeros não é a Idade Média, porque né).

Mas toda essa discussão acabou levantando mais debates sobre o realismo nos livros de fantasia baseados na Idade Média. Afinal, até onde se é possível usar o argumento de que na era medieval tal coisa era assim quando o mundo da história é original, completamente independente desse período e totalmente extraído do contexto que o levou a ser desse jeito? A maior parte dessas histórias nunca oferece explicações sobre como coisas da Idade Média - homofobia, misoginia, etc - foram parar no mundo delas; há alguma relação entre homofobia, misoginia, etc, e religião? Se o mundo tiver mais de uma religião, há diferença no modo com que eles veem tais assuntos? Ou não é relacionado a religião e na verdade vem de outro motivo qualquer, outro contexto histórico? 

Enfim, como diabos isso aconteceu?

We may never know ¯ \ _ (ツ) _ / ¯

Usar ideais da Idade Média sem contextualizá-los no seu mundo original é escrita preguiçosa. É fazer isso porque sempre foi feito assim; é despejar tinta no tela sem nem olhar a cor pra ver se é a certa; é seguir a manada sem questionar. E o que é pior: é seguir a manada e repetir todos os erros e incongruências da manada sem nem parar para pensar nisso. Sabe por quê?

Porque havia pessoas de cor na Idade Média¹ e não há pessoas de cor em boa parte dos livros mainstream de fantasia. Porque mulheres participavam ativamente da sociedade na Idade Média e eram importantes² e o mesmo não acontece com tanta frequência na literatura fantástica (mas sim, acontece em Game of Thrones). Porque havia pessoas queer na Idade Média³ e não há nem rastro delas em 90% dos livros por aí (Game of Thrones também foi mais realista nesse aspecto). E o que é interessante, em tempos de guerra (e vocês bem sabem que a maioria das histórias de fantasia se passa em tempos de guerra) homens são vítimas frequentes de violência sexual*, bem mais do que as mulheres porque né, é lógico que há mais homens do que mulheres nos campos de batalha e acampamentos. Mas com que frequência vemos personagens masculinos sendo estuprados? Com que frequência vemos mulheres importantes para o plot ou pessoas de cor ou queer? Isso tudo é realismo, isso tudo aconteceu na Idade Média, mas estranhamente apenas a violência sexual contra a mulher acaba se enfiando na histórias, geralmente como plano de fundo para ilustrar o quão terrível e injusto o mundo é. Por quê? Por que não vemos esses outros aspectos do realismo, realismo este que tantos defendem quando alguém questiona o fato de mais uma mulher sendo estuprada em uma série de fantasia?

A resposta é simples: a maior parte dos livros de fantasia mainstream é escrita por homens cis, héteros e brancos para homens cis, héteros e brancos.

Não, eu não estou dizendo que não existe mulher homofóbica ou racista ou mesmo sexista (ô se existe), mas mulheres não entram no público alvo na hora que esses escritores pensam em quem vai ler suas obras. Também não estou dizendo que isso é feito de propósito e nem que os escritores querem alienar parte de seu público ao fazer suas histórias desse jeito. Mas acontece, e acontece justamente porque sempre seguem a manada sem pensar duas vezes. É mais fácil fazer as coisas como elas sempre foram do que realmente pensar e refletir sobre como tais coisas deveriam ser feitas.

Violência sexual contra a mulher é visto como algo normal. Sempre aconteceu, sempre vai acontecer e é isso mesmo. Cenas com tal conteúdo são usadas para chocar, claro, mas não chocar tanto. Ou melhor, para não chocar tanto o homem que as assiste. O que chocaria o homem demais mesmo é ver aquele personagem masculino foda/badass/whatever sendo estuprado do mesmo jeito que tantas personagens femininas o são, e é por isso que homens quase nunca sofrem qualquer tipo de violência sexual em livros, filmes ou séries. Mulheres sendo estupradas? Ih, é ruim e desagradável, mas é a vida, né? Mas homens sendo estuprados? Aí já é um escândalo. Já é demais.

Outro indício de que histórias de fantasias são voltadas principalmente para homens pode ser encontrado ainda em Game of Thrones: a sexualização de mulheres lésbicas, ou melhor dizendo, de mulheres fazendo "sexo lésbico". Mulheres aparecem nuas o tempo inteiro na série, claro (bem mais do que os homens), mas as cenas de sexo entre mulheres são estupidamente abundantes se você levar em conta que (aparentemente) nenhuma personagem feminina é lésbica e as que talvez sejam nunca aparecem nessas cenas. E o que é pior: sempre há um homem assistindo tudo. É o ápice da transformação de relacionamentos entre mulheres em fetish para que o homem hétero ache sexy. Em momento nenhum a série leva em conta as mulheres lésbicas e bissexuais que quase nunca se veem representadas na mídia e que quando veem é apenas para que o homem hétero se divirta e ache bonito. 

E se mulheres não fazem parte do público alvo dessas histórias, pessoas queer e de cor fazem ainda menos. Na maior parte do tempo elas sequer existem, e quando alguém reclama dessa falta de realismo as mesmíssimas pessoas que correm para gritar que as feministas estão estragando tudo ao questionar cenas de violência contra mulheres são as que resmungam que agora tudo tem que ser por cota. Cota pra negro na história, cota pra gay na história, cota pra mulher na história... Esqueçamos que lá na bendita Idade Média as coisas eram assim, né? Que isso faz parte do tal ~realismo~ que tanto querem, hm? 

Escolher vitimizar as mulheres através de violência sexual pra ser pseudo-realista é bem mais fácil do que ser realista de verdade. E obviamente incomoda bem menos.

Outra coisa a se levar em conta é a frequência com que a Idade Média é escolhida como base para tantos mundos de fantasia. Será que isso acontece por que é mais fácil de se fazer, já que é o que predomina na literatura fantástica? Se sim, seria assim tão difícil modificar esse mundo pseudo-medieval para ser mais igualitário? Acredito que não, então por quê? Por que continuar recriando a mesma coisa e continuar deixando tantos grupos sofrendo opressão quando não é tão complicado fazer o contrário? 

Talvez o escritor deseje criar personagens que enfrentam essa opressão, certo? É uma possibilidade, afinal de contas, e uma bem interessante, mas tenho pra mim (e você pode discordar, tá?) que o uso da Idade Média como base pra tudo serve muito mais para apagar esses grupos e assim abrir espaço para personagens homens, cis, héteros e brancos do que para oferecer um ambiente para histórias de personagens marginalizados. I mean, sexismo, homofobia e racismo na era medieval são usados para justificar a ausência de mulheres, pessoas queer e pessoas de cor, porque você sabe, né, sexismo faz as mulheres aparecerem apenas para parir, homofobia e transforbia fazem as pessoas queer desaparecem com o sopro do vento e racismo faz as pessoas de cor se fecharem em suas casas e não viajarem nunca para a terra do homem branco. Obviamente.

Escritores escrevem o que quiserem, claro, e ninguém os está obrigando a nada. Mas é interessante refletir sobre certas coisas de vez em quando.

Em conclusão, essa exigência de realismo em livros de fantasia é conversa pra boi dormir. As pessoas que o exigem são quase sempre as mesmas que condenam quando outras o pedem por completo, com mulher, gente queer e de cor e tudo mais. Ah, mas era assim na Idade Média! não é argumento para livros que não seguem a risca as dinâmicas da Idade Média, simples assim. O escritor escolhe fazer tudo do jeito que aparece no livro/série/filme, e se ele ignora o resto do ~realismo~ não é o ~realismo~ que vai salvá-lo na hora das críticas. Essa conversa de realismo serve apenas aos grupos que não são excluídos de modo algum das histórias de fantasia.

E é esse foco que a literatura fantástica mainstream tem no homem branco cis e hétero é o principal motivo para eu estar me afastando de livros de fantasia escritos por homens. Ainda leio vários, claro, e dos meus quatro escritores favoritos dois são homens, mas no fim das contas vale mais a pena ler livros escritos por esses grupos que são excluídos mesmo. Antigamente eu via isso tudo como o "preço a pagar" para ler meu gênero favorito; sim, eu vou ter que aguentar homens falando de mulheres como se elas fossem pedaço de carne durante o livro inteiro; sim, eu vou ter que suportar o ar cheio de testosterona porque mulheres estão sempre em falta nesse mundo; sim, aquela é mais mulher sendo romantizada e sexualizada pelo palerma do protagonista (que Deus me ajude); e olha, mais uma mulher/pessoa de cor/pessoa queer sofreu uma morte horrível para incentivar outro homem branco e hétero, que novidade!; e yeep, o escritor nunca pensou que essas cena entre essas duas pessoas do mesmo sexo seria interpretada como romântica, mas você já a leu direito? É o maior pseudo queerbaiting** da história.

Mas não mais, felizmente. Desde que movi do mainstream para as áreas mais desconhecidas da fantasia (em inglês geralmente, já que coisa não mainstream publicada aqui no Brasil é meio impossível) me dei conta de que eu não preciso pagar preço nenhum para apreciar o gênero que se tornou meu favorito antes mesmo de eu completar 7 anos de idade. Eu não tenho que aguentar nada para ler o que eu gosto. Se antes eu insistia em um livro particularmente heteronormativo, cheio de homens e de pessoas brancas, hoje eu posso desistir da leitura e abrir outro, e se esse também não me agradar pelos mesmos motivos, há centenas na fila. Hoje em dia eu não pago coisíssima nenhuma, e não me obrigo a suportar mais nada. 

Nem mesmo Game of Thrones

(Em inglês:
girl on girl hate rants literários

Rants literários: Girl on girl hate

19:49neo

Até a última versão da minha história, todos os reinos fictícios do mundo que eu criei, Arzanael, tinham reis. Isso, é claro, é fruto de sexismo internalizado, o velho padrão homens-no-poder que na minha história faz ainda menos sentido, já que boa parte desses reinos não faz distinção entre gêneros. Na versão que estou prestes a começar, portanto, decidi mudar. Os dois reinos élficos, Narovia e Davendra, ganharam rainhas, Vittoria e Anphea respectivamente.

Para falar a verdade, Vittoria já existia, mas vivia na sombra do rei, que nessa nova versão está morto há tempos (os anciões que me acompanham desde a SW talvez se lembrem dela, que se chamava Naëmah). A personalidade dela foi tão alterada que nada ficou da velha Naëmah e isso foi uma evolução e tanto. Naëmah era um tanto passiva demais, percebo agora, e não fazia muita coisa além de concordar com o marido o tempo todo.

arte por hgjart
Vittoria e Anphea são completamente diferentes. Vittoria viveu boa parte de sua vida em guerras e perdeu o marido e um de seus filhos nela. Ela também gosta de poder; ama liderar e ama ser a rainha, e é muito boa no que faz. Foi graças a ela que Davendra sobreviveu às guerras, e hoje em dia ela é adorada por seu povo como nenhum outro rei ou rainha antes dela o foi, o que, é claro, ela adora. Ela é um tiquinho insana, verdade seja dita, e depois de deixar de ser Naëmah, se tornou uma das minhas personagens favoritas da série.

Já Anphea não nasceu para reinar e nem foi treinada para isso. Sendo a mais nova de quatro irmãos e todos, inclusive ela própria, sendo imortais por serem elfos, ninguém nem imaginava a possibilidade de ela se tornar rainha, ainda mais considerando que todos (menos ela) tinham filhos ou filhas. Mas a guerra que dá início à história acabou fazendo dela a única herdeira do trono de Narovia, e assim Anphea teve que se virar para governar um reino que ela jamais quis.

Desde que terminei de escrever o conto do Amigo Secreto (mais sobre isso depois!), venho trabalhando na minha história de novo. Ainda não a comecei de fato; estou organizando o plot, e com isso acabei percebendo que Anphea e Vittoria se encontrariam em um dos livros. Tratei de pensar em como as duas se relacionariam. Sendo as governantes dos últimos reinos élficos conhecidos, o que pensariam uma da outra? Já teriam se encontrado antes? Como se tratariam?

A resposta para essas perguntas veio em minha mente de imediato. 

Elas se odiariam.
✖✖✖✖

arte por ladypingu
Quem se lembra do mito de que garotas vão sempre odiar outras garotas?

Afinal, é claro que duas mulheres (ou garotas) no mesmo "nível" se odiariam, mesmo sem razão alguma para tal coisa. Como não? Garotas estão sempre boicotando umas as outras, né? Estão sempre com inveja da Cicrana por ser mais bonita ou mais inteligente, sempre praticando slutshaming em qualquer uma que use um short ou saia curta demais, não é? Amizade entre garotas é algo traiçoeiro, óbvio.

Ou pelo menos é isso que nos dizem o tempo todo. E isso é sexismo internalizado.

Todo mundo é ensinado a ser o melhor desde pequeno, não importa se garoto ou garota. A diferença está no modo com que isso é feito. Garotos são ensinados a serem os melhores para eles mesmos. Se eles forem isso, isso outro e aquilo lá, serão homens de sucesso e garotas se jogarão aos seus pés. Garotas, por outro lado, são ensinadas a serem as melhores para outros - se elas forem isso, isso outro e aquilo lá, outros as aprovarão, em especial garotos. Isso, isso outro e aquilo lá geralmente sendo beleza, polidez e, de certa forma, inteligência.

Garotos ganham "prêmios" se forem os melhores. Garotas ganham a oportunidade de serem escolhidas por alguém.

Ou seja, enquanto o sucesso de garotos é medido por sua própria capacidade de ser bom (na maior parte das vezes), o das garotas envolve bem mais a capacidade de outras garotas serem boas também. Se uma já é bonita, educada e inteligente, todas as outras são rebaixadas. A garota bonita, educada e inteligente se torna o inimigo.

Você já deve ter visto algo assim em livros, filmes, etc. A garota popular e bonita que menospreza todas as outras, de modo bem mais agressivo do que o garoto popular e bonito, que às vezes pode menosprezar os outros também. Com garotas, a coisa se torna uma competição, mesmo quando a maior parte não quer participar. A sociedade cobra o tempo todo, seja bonita, seja educada, e a garota popular e bonita é um lembrete daquilo que o resto está sendo privado: um lugar ao sol. Aprovação. 

E não foi isso que nos ensinaram desde pequenas, que a aprovação de todos era o máximo que poderíamos alcançar?
✖✖✖✖

Há o movimento contrário, claro. Mas um movimento que falhou - e falha até hoje - miseravelmente.

A garota popular e bonita se tornou o símbolo da futilidade. E aqui sou obrigada a repetir: sexismo, dessa vez não tão internalizado assim. A garota popular e bonita representa o pintar as unhas, o pentear o cabelo, o se arrumar; representa gostar de gastar dinheiro em roupas, em se preocupar com a aparência, em querer ser bonita; representa o feminino. E o feminino vem sendo demonizado há milênios.

arte por sygnin
Mais uma vez, você já deve ter visto algo parecido, principalmente se for leitor de YA. A garota principal é quase a garota que não é como todas as outras, e portanto a garota que rejeita o feminino e é glorificada por isso. A garota que não é como todas as outras tem todas as características consideradas dignas; não se importa tanto com a aparência, não liga para essas baboseiras de unha pintada e cabelo arrumado, não gasta tempo em frente ao espelho, não lê shoujo, não gosta de romance. Uma garota considerada boa, e boa por ter características supostamente masculinas.

Mas é claro que apesar de não se importar com a aparência, a garota que não é como todas as outras sempre será linda, mesmo que ela própria não saiba disso. Essas garotas boas nunca são feias; se forem, são tomboys demais, não são mulheres de verdade. Estão erradas também.

Fica-se então entre a cruz e a espada. Devemos nos importar com a aparência, devemos abraçar coisas que talvez gostemos, como pintar as unhas e comprar roupas, mesmo que isso signifique ser a garota que é como todas as outras? Mesmo que isso signifique ser desprezada por fazer exatamente o que fomos ensinadas a fazer desde pequenas?

Ou talvez seja melhor mesmo abdicar de tudo isso, mesmo que gostemos de fazer essas coisas no final das contas. Talvez seja melhor agir mais como o estereótipo do garoto; ler shounen ao invés de shoujo, gostar de filmes e livros de aventura e video games, rejeitar essas frescuras de se importar com roupa e aparência.

E então esperar que sejamos bonitas o suficiente para sermos aceitas assim.

✖✖✖✖

arte por david-willicome
O girl on girl hate está em todo canto, mas na literatura é estupidamente forte. As garotas que não são como todas as outras odiarão as garotas populares porque elas ainda são vistas como o ideal, mas serão escolhidas pelo garoto no fim do dia se forem bonitas o suficiente (e elas sempre são). Se duas mulheres são poderosas, elas serão rivais. A outra sempre será vista como uma ameaça ao seu posto, ao seu poder. À sua oportunidade de ser escolhida por alguém.

Já devo ter falado por aí, mas comecei a escrever por sentir falta de garotas nos livros e filmes de fantasia que assistia. Minha protagonista é, portanto, uma garota. E por um ano e meio, lá em 2007-2008, ela foi praticamente a única garota "boa" e importante da história inteira. Mas após ler vários e vários livros YA, comecei a perceber um padrão: tirando a principal, todas as garotas da história eram colocadas para baixo, por diversos motivos. Por serem fúteis (femininas), por serem "vadias" (slutshamming), por se arrumarem demais (femininas de novo), e assim por diante. Era quase como se o autor estivesse desesperado para provar que sua protagonista era sim boa, era sim uma pessoa digna. E o único modo de provar isso, aparentemente, era eliminando as concorrentes. 

Era fazendo com que a protagonista fosse a única disponível para ser escolhida.

O marido de Vittoria e a versão masculina de Anphea eram grandes amigos.


✖✖✖✖

Hoje em dia, a amizade entre duas garotas é o que move minha história. É o motivo de ela acontecer, é o que faz ela se desenrolar e o que vai levá-la até o seu fim. A primeira versão, lá de 2007-2008, é completamente diferente da de hoje por esse motivo. 

arte por brookegillette
Mas nem assim, nem mesmo fazendo o enredo de uma série inteira girar em volta da amizade de duas garotas, consegui me livrar do sexismo internalizado. Da noção de que garotas vão odiar outras garotas sem motivo algum além do medo de terem sua oposição ameaçada. E a posição de Vittoria e Anphea estaria ameaçada, não é? Como poderia Anphea ocupar o cargo de mulher mais poderosa de Arzanael se Vittoria está por aí governando o maior exército élfico das terras conhecidas? Como poderia Vittoria ter paz com Anphea sempre por perto para lembrá-la que ela não é a única com poder?

O interessante, porém, é que não consigo imaginar nenhuma das duas se sentindo ameaçada pelos reis dos outros três reinos que aparecem na história. Por quê? Por que se importar apenas com a outra mulher?

Como já dito lá em cima, mulheres são ensinadas a serem as melhores para serem escolhidas. E isso quer dizer que nunca há espaço o suficiente para mulheres; afinal, para que precisem ser escolhidas, o número de vagas deve ser limitado. Uma sempre tem que cair para que a outra possa ter o seu lugar.

Isso é ainda mais verdade em livros de fantasia. Quando há uma mulher com poder, geralmente é apenas uma. As outras são colocadas para baixo para que a escolhida possa ter seu lugar ao sol. A ideia de duas ou mais mulheres poderosas convivendo em harmonia muitas vezes soa bizarra justamente por estarmos acostumados a ver apenas uma alcançando esse objetivo. Se houver duas, isso quer dizer que não há uma mulher com poder ainda; há duas lutando para ter poder, poder que só terão quando a outra for vencida.

Homens também lutam entre si nesse sentido, claro, mas há mais espaço para eles. Suponhamos que existam cinquenta homens e cinquenta mulheres, e dez cargos de poder. O lógico seria que cinco ficassem para os homens e cinco para as mulheres, e assim cada grupo disputaria entre si por cada cargo, mas a verdade - ou o que nós pensamos ser verdade - é bem diferente. Os cinquenta homens disputam nove cargos. As cinquenta mulheres disputam apenas um.

✖✖✖✖

É por isso que a literatura é tão povoada por girl on girl hate. O mundo real não chega a ser tão ruim assim (na minha experiência, não é nem de perto), mas tal coisa existe sim fora dos livros. E essa realidade só vai mudar se amizade entre mulheres deixar de ser algo invisível à nossa volta. Não digo na vida real, já que tenho mais amigas do que amigos e sei de várias garotas que estão na mesma situação, mas nos livros, filmes e séries. Quantas vezes não vimos a amizade entre homens glorificada? Não importa o gênero do livro/filme, os bromances da vida estão sempre presente. Em fantasia então, nem se fala. Quantas vezes não vimos soldados que morreriam um pelo outro, ou generais que fariam tudo por seu rei não apenas por lealdade, mas por amizade?

Mas e os sismances? Onde estão as rainhas e suas amigas? As princesas e suas damas de companhia? Onde estão as garotas pobres que confiam umas nas outras pra tudo? Onde estão as mulheres que morreriam uma pela outra sem hesitar?

Sempre zoam mulheres por andarem juntas o tempo todo, mas todo mundo escolhe ignorar o porquê de fazermos isso: é mais seguro. Uma mulher sozinha é muitas vezes um alvo em potencial (para homens, principalmente), mas um grupo de mulheres pode se livrar de um perigo desse tipo com facilidade. E ainda assim quando tais grupos são representados em livros e filmes, é sempre para fazer piada. É sempre apenas para zombar da maquiagem retocada no banheiro e a suposta incapacidade de ser independente, a tal da necessidade de pertencer a um grupo. É como se a amizade entre mulheres fosse sempre isso: algo fútil, algo a ser zombado.

Mas não é.

Hoje em dia fujo de livros e filmes que retratem mulheres como inimigas. Ignoro sinopses que indicam uma garota que não é como todas as outras, porque, sério, tal coisa não existe. Nenhuma garota é como a outra, assim como nenhum garoto é como o outro, mas aposto que você nunca viu um livro descrevendo um garoto como diferente dos demais. Garotos não precisam disso. O normal deles é aceito. O nosso não.

arte por hello-ground

E sim, Vittoria e Anphea não se odeiam mais. Na verdade, são grandes amigas.

elitismo rants literários sexismo

Rant literário: elitismo

18:03neo


OBS: Vou generalizar nesse rant para não ter que ficar interrompendo o texto a toda hora para deixar claro que não são todos do grupo em questão que agem de determinado jeito. Ou seja: sei que tem gente que não é assim em cada um dos grupos aqui mencionados.

Se tem uma coisa que eu odeio é o elitismo.

Não só na literatura, mas em qualquer lugar; no mundo do cinema, da música e até da televisão em geral. Odeio-o quando ele é escancarado, exposto na fala de alguém e impossível de se ignorar, mas o odeio ainda mais quando ele vem diluído e disfarçado em um discurso supostamente respeitoso que na verdade é condescendente. Acredito que boa parte de quem lê esse blog gosta ou de fantasia ou de YA ou de romance (ou desses todos), então acho que é seguro dizer que todo mundo aqui já deu de cara com o elitismo alguma vez na vida. 

Eu, por muito tempo, tive sorte nesse sentido. Nenhum dos meus amigos nunca se importou muito com o fato de que gosto de fantasia e na minha família o único que ainda tenta me convencer a ler outras coisas é meu avô e mesmo ele já desistiu de me oferecer livros de fantasia/mistério como prêmios se eu lesse esse ou aquele clássico porque ele (enfim) percebeu que eu simplesmente não consigo, na maioria das vezes, vencer 200 páginas de um livro clássico sem querer enfiar minha cabeça em um balde de ácido. Acho que foi justamente por eu ter começado a ler muito bem cedo que ninguém disse nada por vários anos, já que todo mundo meio que esperava que eu "cansasse" de fantasia e "evoluísse" para os clássicos. Coisa que eu nunca fiz e que provavelmente nunca vou fazer.

Não gostar dos clássicos e ler muito é cair na área dos que "não gostam de literatura de verdade e se contentam com livrinhos de mercado", livrinhos de mercado esses que são geralmente os YAs adaptados para o cinema ou que se tornam febre. Estranhamente, não sou fã de YA (apesar de ler vários de vez em quando), mas ninguém nunca perdeu muito tempo perguntando o que eu realmente gosto. No caso, fantasia.

Fantasia essa que é mal vista a torto e a direito. Os que gostam dos livros clássicos a desprezam e alguns fãs de ficção científica (gênero também desprezado pelos já citados leitores de livros clássicos) também não perdem tempo antes de colocá-la pra baixo. Mas, ironicamente, há elitismo até mesmo dentro da fantasia, onde fãs da fantasia grimdark e fãs da fantasia mais tradicional trocam farpas de vez em quando, cada um tentando convencer o outro de que a sua fantasia é a verdadeira ou a melhor. E como se isso não bastasse, fãs de fantasia não pensam duas vezes antes de falar mal dos já citados livros YA e dos seus leitores, que também não hesitam muito antes de torcer o nariz para a literatura erótica.

Esse "fenômeno" me lembra muito o modo como o povo do sul/sudeste brasileiro está pronto para reclamar dos estrangeiros rotulando a nossa cultura e nosso povo, mas no segundo seguinte já está na internet fazendo piada de nordestino. Ou como o nordestino reclama do sul/sudeste e dos estrangeiros, mas também não perde tempo na hora de zombar do norte (e principalmente do Acre). Ou ainda como o brasileiro rotula a África como selva e como continente pobre, e fica todo ofendido quando o Brasil ou a América do Sul é considerada uma imensa Amazônia selvagem e violenta. Esse tipo de comportamento é praticamente a confirmação de que o "oprimido" pode muito bem ser estupidamente agressivo se lhe for dada a oportunidade de ser o "opressor" (transportando esses conceitos para a literatura, claro).

Alguns meses atrás li um post em um blog literário famoso (cujo nome prefiro não revelar) falando justamente sobre a suposta literatura de mercado e a suposta literatura de verdade. Apesar do post em si ter (aparentemente) boas intenções, o texto todo foi extremamente condescendente; segundo o autor, a literatura de mercado era boa porque fazia o pessoal mais jovem começar a ler e ele defendia sua existência porque ela levaria os leitores à literatura de verdade eventualmente. Isso me fez revirar os olhos com tanta força que quase temi que eles fossem parar na minha nuca. A própria suposição de que há uma literatura de mercado e uma de verdade já me soa pra lá de estúpida. Esses "livrinhos de mercado" vendem porque eles são capazes de conquistar um grande número pessoas, coisa que a "literatura de verdade" não é muito capaz de fazer. Ou seja, a coisa toda é sobre um grupo de pessoas que gostam de um certo tipo de livro se julgando superior a outro grupo de pessoas que gostam de um outro certo tipo de livro porque o deles é (na sua opinião) melhor. E, é claro, eles também acham que as pessoas do outro verão a razão, cedo ou tarde, e trocarão de grupo. Óbvio.

Há pessoas que começaram a ler com livros YA e depois passaram para a fantasia/ficção científica/clássicos? Sim, claro. Do mesmo modo com que há pessoas que começaram com fantasia e/ou ficção científica e passaram para os clássicos ou para os YAs. E há quem tenha começado com fantasia que vai terminar com fantasia (ou com qualquer outro gênero). Criar uma espécie de pirâmide de qualidade na literatura é um pensamento puramente elitista e na minha opinião francamente estúpido. Não me entenda mal; não gostar do que um gênero propõe é perfeitamente normal porque gêneros servem justamente para agrupar histórias que compartilham alguns aspectos que podem ou não agradar a você, mas desprezar e considerar um gênero como inferior ao outro é estupidez. Há livros bons e ruins em todos os gêneros, e mesmo essa divisão entre bom e ruim é subjetiva.

Já perdi a conta de quantas vezes já vi leitores de um gênero que não é o YA reclamando de como sempre adaptam livros YA para o cinema ao invés de "livros bons" e como isso tudo é "feito por dinheiro" porque YA obviamente vende. Aí eu pergunto: se tocar de que um livro bom para você pode ser ruim para outro pra quê? Cair na real e perceber que Hollywood faz tudo por dinheiro pra quê? Aceitar que seu gênero, obviamente tão incrível para você, não é o que faz mais sucesso no mundo pra quê? É muito mais fácil continuar pensando que seu grupo é um grupinho exclusivo de pessoas com gosto refinado e que o resto da humanidade engole qualquer merda mesmo, não é?

Há até sexismo no modo com que o gênero YA é tão desprezado por esses grupinhos exclusivos de pessoas com gosto refinado. Veja bem, a maior parte (não todos) dos YAs que chegam ao cinema são agora voltados para garotas, como por exemplo Crepúsculo, Os Instrumentos Mortais e Jogos Vorazes. Há sempre aqueles que consideram essas três histórias como "farinha do mesmo saco" sendo que uma é de romance, a outra é de fantasia urbana e a última é de distopia. E o que essas histórias têm em comum? Ora, são protagonizadas por garotas que acabam se apaixonando por alguém. Sim, isso é literalmente tudo o que há em comum entre os três livros, que se passam em "mundos" completamente diferentes e possuem plots completamente diferentes. O engraçado é que quase nunca vejo os grupinhos exclusivos apontando que Batman, Homem de Ferro e Arqueiro Verde são muito mais semelhantes entre si do que Crepúsculo, Os Instrumentos Mortais e Jogos Vorazes jamais serão.

(E, não, não gosto nem de Jogos Vorazes e nem de Crepúsculo ou Os Instrumentos Mortais. Antigamente gostava bastante de Os Instrumentos Mortais, mas a série me decepcionou demais no livro 4, então desisti dela.)

(Esse sexismo também pode ser visto na música, aliás. É só uma banda ou cantor/a ter fãs garotas em sua maioria que está decidido: a banda ou cantor/a não pode ser levada a sério.)

Concluindo, o que muitos precisam entender é que opiniões diferem. Sim, eu sei que na teoria há isso de respeitar a opinião de outra pessoa, mas na realidade poucos são os que hesitam antes de considerar os livros YA, a fantasia, a ficção científica ou qualquer outro gênero como inferior apenas porque não é o tipo de história que você gosta. Às vezes eu tenho a impressão de que só é algo cair na boca do povo que os grupinhos exclusivos passam a não curtir esse algo, mesmo que antes de sua popularidade eles tenham ou gostado do algo ou ter sido impassível a ele. Há essa ideia bizarra na nossa sociedade de que tudo - livros, músicas, filmes, programas - que se torna popular é ruim, e que um número maior de pessoas curte a tal coisa por "não saberem melhor" ou por "terem preguiça de pensar". Sim, você pode não gostar da coisa em questão, mas se você realmente considera alguém inferior e o vê como menos inteligente e mais preguiçoso por algo que esse alguém goste, me desculpe, mas você só está tentando desesperadamente se sentir especial. E nem preciso dizer que se você tentar tanto ser único e diferente essa é, na verdade, a última coisa que você vai ser.
mark lawrence misoginia prince of thorns

Rant literário: Mark Lawrence perde uma ótima oportunidade de ficar calado.

16:36neo

Confesso que o fato de Prince of Thorns não ter nenhuma mulher (ou não-branco ou não-heterossexual) que preste sempre me pareceu mais produto da velha zona de conforto e não de uma mente fechada ou, posso até dizer, misógina. Sempre desprezei o livro (como vocês podem ver na resenha que fiz dele), mas né, até pensei em ler o último lançamento do autor, Prince of Fools, para dar uma nova chance pro cara e tal. Talvez ele provasse ter melhorado. 

Mas, como fica bem evidente em um post que ele fez dia 9, Lawrence fez questão de esclarecer que não, não melhorou.
"But, major roles for female characters in every book, no matter what it's about, no matter what the scope, or the length of the book? Then you lose me. If you replace 'female' with 'male' in the argument I'll object just the same.[...]
It's perhaps traditional when faced with criticism from several corners, and given a few years to mull it over, to come to some epiphany or moderate your views with those that run counter to them ... but ... and I have given it some thought ... I'm not here to do that. I wholly reject those criticisms now, sitting on 30,000 ratings, just as I did on launch day, sitting on nothing but the hope people would enjoy the story I'd told.
Yes, you're entirely welcome to prefer stories with particular components, be they female weight-lifters, plucky young wizards, or Machiavellian politics ... whatever. And yes, you're entirely welcome to pick up my books and, on finding that particular component absent, to say 'I didn't enjoy this book because it lacked the thing I like'. But to criticise me as an author for not putting in that thing you like, as if it were some kind of fundamental flaw in personality, ethics, or decency ... that is, was, and always shall be ... crap. [...]
(Fonte).

Traduzindo:
"Mas papéis maiores para personagens femininas em cada livro, não importa do que se trata, não importa qual escopo ou o comprimento do livro? Aí você me perde. Se você substituir "feminino" por "masculino" no argumento, vou objetar da mesma forma. [...]
É talvez tradicional que quando confrontado com críticas de vários cantos, e dado alguns anos para meditar sobre isso, se chegar a alguma epifania ou moderar os seus pontos de vista com os que são contrários a estes... mas... e eu pensei nisso... Eu não estou aqui para isso. Eu rejeito totalmente as críticas agora, sentado em 30.000 avaliações, assim como fiz no dia do lançamento, sentado em nada além da esperança de que pessoas iriam desfrutar da história que eu tinha contado.
Sim, você é totalmente bem vindo para preferir histórias com componentes específicos, sejam eles mulheres levantadoras de peso, corajosos jovens bruxos ou política maquiavélica... tanto faz. E sim, você é totalmente bem vindo para pegar meus livros e, ao descobrir ausente um componente em particular, dizer "eu não apreciei este livro porque faltou a coisa que eu gosto". Mas criticar-me como autor por não colocar aquela coisa que você gosta, como se fosse algum tipo de falha fundamental na minha personalidade, ética ou decência... Isso é, foi e sempre será... uma porcaria. [...]"
Porque obviamente mulheres em livros de fantasia são uma "coisa que você gosta", do mesmo tipo que elfos, dragões ou anões são (ou jovens bruxos corajosos e política maquiavélica). Sabe quando alguém te pergunta que tipo de livro de fantasia você gosta? Eu sempre respondo que gosto de livros de fantasia com elfos. Talvez agora eu devesse começar a responder que gosto de livros de fantasia com mulheres. Porque né, você sabe, a gente tem que especificar bem os tipos de criaturas mitológicas que a gente quer em um livro desse gênero. Elfos, dragões e anões não existem. São a "coisa que você gosta" em histórias de fantasia. E mulheres também são, é claro (pff, como alguém pode ter pensado que a gente existe de verdade um dia?). 

E onde estão os mitos sobre mim? Por que os elfos podem ser "elfos da luz" e "elfos escuros/drows" e eu, uma mulher e ser mitológico, que habita o imaginário dos homens há milênios, tenho que ser só "mulher"?

Exijo mais do que isso. Quero lendas extensas sobre as habilidades sobrenaturais das mulheres. Como, sei lá, dar à luz ou fazer xixi sem um pênis. Coisas incríveis assim, completamente absurdas e obviamente fantasiosas. Exijo que me chamem de "mulher soteropolitana", aquela que habita as ruas de Salvador durante o dia (porque de noite tá meio difícil e tal, desculpem. Podem reclamar com a produção) e se esconde entre os homens do curso de Relações Internacionais, sussurrando coisas sobre a política moderna em seus ouvidos e os levando a confundir Hobbes com Locke nas provas. Obviamente as lendas terão que esconder que eu não costumo usar roupas decotadas ou curtas porque não me sinto confortável nelas, e me darão um vestido totalmente transparente. Também terão que mentir sobre minha aparência, porque não sou lá tão bonita.

Mas lendas dão sempre um jeitinho em tudo, certo? Só espero que não me confundam com a "mulher pernambucana", porque por mais que a Globo tente lhes convencer do contrário, nossos sotaques não são os mesmos. Aposto que nossas habilidades sobrenaturais não são as mesmas também. A única "mulher pernambucana" que conheço (oi, Lana!) habita o curso de Direito e provavelmente sussurra sobre o código penal no ouvido dos homens durante as provas. 

Mas aí a coisa fica complicada. Há "mulheres soteropolitanas" que não habitam o curso de Relações Internacionais (são a maioria, mas shh) e "mulheres pernambucanas" que ficam longe do curso de Direito. Te indico apenas uma solução, homem mundano com quem falo enquanto assombro também a internet, e ela é simples: compre a mais nova edição de qualquer livro de RPG. Aposto que agora, após tanto tempo renegadas aos artigos confusos da Wikipédia, nós, mulheres, teremos nossa seção neles. E agora vocês finalmente poderão nos estudar de verdade. Talvez até a mim, um exímio exemplar da 'mulher soteropolitana". Talvez parem de nos confundir com sorvete. Quem sabe?

Óbvio que em seu post Lawrence culpa o ambiente medieval, o fato do livro ser pequeno e blá blá blá, coisa que já discuti no meu rant sobre a fantasia grimdark e que é história pra boi dormir (e que Daniel Abraham, autor de The Dragon's Path, discute nesse artigo, que vale muito a pena ler se você souber inglês). Em resumo, do better, Lawrence. Tente outra vez. Boa sorte na próxima.

E, pelos céus, alguém já chegou a dizer "não gosto desse livro porque não há homens bem construídos"? Ou "não gosto desse livro porque todos os - poucos - homens sofrem algum tipo de violência"? E somos nós mulheres comparáveis a mitos e a aspectos de narrativa, e não, você sabe, vistas como parte da humanidade?

Ah, desculpem. Esqueci que somos seres mitológicos. Falha minha. Oops.

EDITADO EM 14/12/14: Antes que comentem que estou querendo ditar o que ele (ou qualquer autor) deve escrever (porque eu não sei, já que em momento nenhum disse isso, mas né, viva as várias interpretações que podem ser feitas de um texto), não estou. Estou condenando sua justificativa, que considero ridícula e que dá entender que livros pequenos, com poucos POVs e ambientados em uma era medieval não possuem espaço para mulheres (e que mulheres são descartáveis em livros, já que existem, supostamente, histórias em que elas não se encaixam). Minha opinião? Ele não quis escrever um livro com mulheres e agora está tentando arranjar uma desculpa para o fato de ter feito isso, culpando, é claro, as pessoas que criticaram a história e usando essa ideia de que "tem livro em que mulheres em papéis importantes não se encaixam", que, como já disse, considero ridícula. Ele tem o direito de escrever um livro sem mulheres e/ou minorias em papéis importantes? Tem, óbvio. Ele é senhor de sua própria criação. Esses livros, no entanto, acabam se voltando para um público masculino heterossexual ou para mulheres/pessoas de minorias que não se incomodam com a falta de representatividade. Eu, porém, sou uma mulher que se incomoda, e se incomoda muito, com a falta de representatividade em qualquer livro que seja. Logo não faço parte do público de Lawrence. Se soubesse dos problemas de representatividade de Prince of Thorns, jamais teria gastado a grana que gastei nele logo quando foi lançado aqui no Brasil e obviamente não o teria lido. Mas eu li. E não gostei. E escrevi uma resenha apontando tudo que não gostei, porque eu tenho esse direito. E vou rir na cara de quem reclamar que estou sendo fresca ou "feminazi" (só rindo mesmo, ai) porque, adivinha?, eu tenho direito a não gostar de algo pelo motivo que for. Assim como quem acha que estou sendo fresca ou que sou "feminazi" tem o direito de gostar do livro, sendo ele bom em representatividade ou não. Simples assim.

Esse blog é derivado de um do mesmo nome que tenho no Tumblr, onde os leitores, até onde eu sei (e olha que estou lá no Tumblr há mais de um ano, então conheço quem lê o que eu escrevo), também se importam com representatividade. Se você não se importa, esse é o último blog possível para você nesta Terra. Mas se quiser pode ficar, desde que mantenha o respeito se vier a comentar algo. É isso.
colunas fantasia grimdark homofobia

Rants literários: o problema com a fantasia grimdark

14:55neo

Sim, eu estou fazendo um rant sobre fantasia grimdark. Aposto que ninguém está muito surpreso, já que estou constantemente expressando o quanto odeio a fantasia grimdark em resenhas por aí. Ontem, por acaso, enquanto matava tempo na hora em que devia estar estudando para minha prova na segunda, acabei em um post que falava justamente sobre a fantasia grimdark e sobre qual, na opinião da autora, era seu problema. Ler esse post foi como finalmente enxergar após ter ficado muito tempo cega. Veja bem, eu já sabia que odiava fantasia grimdark, mas sempre atribuí esse desprezo todo à forma com que vários livros do gênero usam a violência apenas para chocar. Agora, no entanto, percebo que odeio esse tipo de obra por vários outros motivos que até então eu sentia que existia, mas não sabia exatamente quais eram.

Para quem não sabe, a fantasia grimdark é um subgênero da fantasia que abrange livros mais pesados, livros que são famosos por serem mais "realistas", sendo assim considerados por possuírem sexo, violência, drogas, xingamentos, sujeira, morte e personagens cinzentos em suas histórias. Gostaria de deixar claro que não acho que a existência desses elementos seja um problema (personagens cinzentos, aliás, são uma dádiva para o gênero), mas sim o que eles geralmente trazem. E o que eles trazem é justamente o motivo de eu odiar tanto esse subgênero, motivo esse que é estupidamente simples, tão simples que eu não faço ideia do porquê não o notei antes: a fantasia grimdark não é escrita para mim.

Na verdade, a fantasia grimdark não é escrita para você se for ou mulher ou não-branco ou não-heterossexual. Fantasia grimdark é escrita para homens heterossexuais brancos. Simples assim.

Bem, fantasia como um todo sempre foi escrita por homens heterossexuais brancos para homens heterossexuais brancos, mas isso, na minha opinião, se deve ao fato de que até pouco tempo atrás era visto como normal colocar a mulher como um ser inferior nas histórias, ou ignorar totalmente a existência de não-brancos e não-heterossexuais, porque, bem, mulheres eram vistas como inferiores na sociedade, e não-brancos e não-heterossexuais eram completamente invisíveis (e muitas vezes ainda são). Fantasia (e ficção científica também) nasceu sendo escrita por homens heterossexuais brancos para homens heterossexuais brancos porque antigamente eles eram vistos como os únicos que importavam. E nem preciso dizer que hoje em dia as coisas não são mais assim, certo? Foi preciso muita luta e muito murro em ponta de faca para fazer o público geral entender que sim, mulheres, não-brancos e não-heterossexuais precisam e merecem ser representados em tudo, não só na literatura. As coisas finalmente começaram a mudar. Sim, ainda aos poucos, mais para as mulheres (geralmente brancas) do que para não-brancos e não heterossexuais, mas as coisas estavam mudando. Havíamos enfim saído da inércia.

Mas aí a fantasia grimdark ganhou força e de uma hora para outra estávamos mais uma vez de volta à estaca zero. E é por isso que eu a odeio tanto.

Como exatamente a fantasia grimdark nos levou de volta à estaca zero? é o que você pode estar se perguntando, e a resposta é simples. A fantasia grimdark se caracteriza por sua violência, sexo, drogas, xingamentos, sujeira, morte e personagens cinzentos, certo? E, como eu disse, esses elementos não são o problema. O problema é que, na fantasia grimdark, (na maior parte das vezes) a violência significa violência contra a mulher/não-branco/não-heterossexual, sexo significa estupro, xingamentos significa xingamentos contra a mulher/não-branco/não-heterossexual, sujeira, drogas e morte estão presentes apenas para chocar e personagens cinzentos significam apenas personagens amargos e/ou raivosos. Ou seja, esses elementos trazem basicamente sexismo, homofobia, racismo e escrita pobre, e ao invés de colocar a mulher como ser inferior e ignorar não-brancos e não-heterossexuais por influência da sociedade sexista, homofóbica e racista da época, agora o fazemos porque isso é, supostamente, ser realista.

Mas isso é ser realista onde?

Segundo escritores e fãs da fantasia grimdark, na idade média. Mas, ao contrário do que eles pensam, havia sim não-brancos na idade média (prestem atenção na aula de história de vocês, fazendo o favor) e mulheres eram vistas como seres inferiores por culpa da nossa querida Igreja Católica. Ser não-heterossexual era um pecado terrível também por culpa da já citada Igreja Católica. Mas nas fantasias grimdak não existe uma Igreja Católica. Na verdade, nos livros do tipo que eu li, quase nunca há a presença forte de qualquer tipo de igreja.

Ou seja, esses livros são sexistas, racistas e homofóbicos sem ter uma explicação plausível. Esses autores estão tomando emprestado coisas da nossa idade medieval para colocar na história deles sem pensar duas vezes em qualquer tipo de explicação ou justificativa, sem refletir sobre causa e consequência, apenas porque ser sexista, racista e homofóbico é supostamente "realista". Ironicamente, o único livro grimdark que eu conheço com uma presença forte da igreja é o que estou lendo agora, A Canção do Sangue, e até o momento as (poucas) mulheres apresentadas foram bem retratadas. Em conclusão: o já batido argumento de "as coisas eram assim na idade média, então nós estamos apenas sendo realistas" não é válido. E, pelo amor de todos os deuses, existentes ou não, por que diabos sempre querem basear tudo na idade média? Eu só consigo ver um motivo: preguiça e zona de conforto. Sem mais.

E é por isso que fantasia grimdark não é escrita para mim. Eu, como mulher e pessoa provavelmente não-heterossexual, não tenho espaço algum em histórias desse tipo. Quando vou contra meu sexto sentido e pego uma fantasia grimdark para ler, eu já a começo sabendo que as mulheres ali provavelmente só servirão para serem estupradas, objetificadas e deixadas de lado, e sei também que terei que aguentar homens (brancos e heterossexuais em 99% das vezes) fazendo piadinhas obscenas e degradantes sobre mulheres o tempo todo. E isso enche o saco. Já cheguei ao ponto de me sentir fisicamente cansada ao ler um livro de fantasia grimdark de tão frustrada que já estou com o subgênero a essa altura do campeonato.

E o mais frustrante ainda é saber que esse tipo de coisa continua acontecendo não por causa de uma coisa difícil de se mudar como a visão de uma sociedade de certa época, mas sim porque esses autores (em sua esmagadora maioria homens brancos heterossexuais) decidiram que é "realista" ser homofóbico, racista e sexista. Mas, surpresa!, não é.

Outro argumento que já vi um autor de fantasia grimdark usar para defender obras assim é que "às vezes o mundo é uma merda mesmo", e desculpe, mas é uma merda para quem? Para seu protagonista homem branco e heterossexual que escolheu ser um mercenário sanguinário e acabou perdendo a família? Sério? Porque pra mim ele é uma merda mesmo para as mulheres que seu mercenário sanguinário e colegas estupraram, para os não-brancos que na maioria das vezes sequer existem, e que quando existem são tratados como selvagens estúpidos, e também para os não-heterossexuais, que estão em um estado ainda pior de não existência. E quando existem, principalmente se forem mulheres lésbicas, é quase certeza de que acabarão estuprados e mortos.

Ou seja, o mundo é uma grande merda para todo mundo, menos para o protagonista branco heterossexual, que vive em estado de angst por causa muitos menores. Por que será, me pergunto, que isso não me surpreende nem um pouco?

E é por isso que acredito que a fantasia grimdark nos levou de volta à estaca zero. Não mais temos sexismo, racismo e homofobia em livros de fantasia por questões externas, mas sim porque se tornou regra. E quem não obedece essa regra é imediatamente colocado como inferior por ser "irreal". Já perdi a conta de quantas vezes vi um fã de fantasia grimdark zombando dos outros tipos de fantasia porque, na opinião deles, esses outros tipos de fantasia não são "sérios". São fracos, são livros para crianças. Fortes mesmo, sérios mesmo, são aqueles que leem fantasia grimdark, porque ela mostra o mundo como ele realmente é, e isso obviamente inclui racismo, sexismo e homofobia sem causa ou explicação. Bônus se tiver escrita pobre, já que agora todo personagem é um babaca, e aqueles que não são acabam vistos como idiotas.

Sinceramente? Me poupem. Sério. Bleh.

Mas Lynx, você pode estar se perguntando, por que esses autores querem tanto continuar considerando racismo, homofobia e sexismo como realismo?

Na minha opinião, sendo bem sincera: porque não os atinge e nem à maioria dos seus personagens principais. Veja essa lista aqui, a lista de grimdarks segundo o Goodreads. Veja quantos tem protagonistas femininas. Ou não-brancos, ou não-heterossexuais. Praticamente nenhum, né? É por isso que racismo, homofobia e sexismo vão continuar como a norma na fantasia atual, porque racismo, homofobia e sexismo garantem que o homem heterossexual branco vai continuar como protagonista. E obviamente é isso que homens heterossexuais brancos querem.

E gostaria de lembrar que a maioria esmagadora de escritores de fantasia, grimdark ou não, é formada por homens brancos heterossexuais. Interessante, né? Ha.

Não direi mais nada. Acho que nem preciso. A verdade está aí para quem quiser ver.

(texto que li ontem e me motivou a fazer esse post - em inglês).

colunas construção de personagem rants literários

Rants literários: a substituição da construção de personagem por seu papel na história

16:12neo

Uma das coisas que eu mais odeio ao ler qualquer livro é ver a construção - e mais tarde o desenvolvimento - de um personagem substituídos por seu papel na história. É algo que acontece com tanta frequência que muitas pessoas sequer notam que há alguma coisa de errado, o que, é claro, abre mais espaço para que essa substituição continue sendo feita. E, acredite em mim, isso é sim uma perda horrível para a literatura.

Mas o que, exatamente, é essa substituição da construção de personagem por seu papel na história?

É algo até bem simples e bem óbvio, e que começa assim que lemos a sinopse de um livro. Na sinopse, a depender do gênero, nos é informado quem são os protagonistas, quem são os inimigos, quem são os pares românticos, quem são seus amigos, etc, e isso tudo nos leva a ter um pré-conceito de cada um desses personagens. É como se os estivéssemos encaixando em seus lugares, como uma peça de quebra-cabeças, e assim acabamos por definir seus papéis. Acabamos, portanto, já gostando ou desgostando desses personagens antes mesmo de conhecê-los.

É claro que não há problema algum nisso; o problema só começa quando esse pré-conceito, essa opinião formada antes do conhecer, é usada para substituir a construção e desenvolvimento de um personagem. O escritor presume que já estamos inclinados a gostar do personagem Z e a odiar o Y (e geralmente estamos mesmo) e não faz muito esforço para realmente tornar o personagem Z alguém interessante o bastante para se gostar ou para transformar o personagem Y em um vilão de verdade. Isso acontece principalmente (mas não exclusivamente, vale frisar) em livros YA voltados para garotas; desde a página 1 já sabemos que a protagonista, nosso maior meio de se conectar à história, vai se apaixonar pelo garoto mencionado na sinopse como o interesse romântico, então já nos acostumamos com a ideia de gostar dele. Ele pode acabar sendo um stalker agressivo e controlador (como já discutido no primeiro post dos rants), mas não importa, porque ele é o interesse romântico e provavelmente é lindo de morrer, então, sim, gostaremos dele, mas gostaremos pelo papel que ele tem na história, e não por ele próprio.

Como eu já disse, isso acontece em todos os gêneros, com todos os tipos de personagem. Somos condicionados a simpatizar com o melhor amigo do protagonista, a odiar o vilão/antagonista, a gostar do interesse romântico (e assim por diante) o tempo todo, em todo livro que lemos. O próprio protagonista acaba no meio dessa confusão também, e os autores usam os meios mais simplistas de fazer com que o leitor se identifique com o personagem principal da história; ele é sempre tímido ou quieto, com poucos (mas ótimos) amigos, e sempre gosta de ler. Por quê? Simples: essas são as características mais comuns em leitores do mundo todo. Tendemos a ser mais introvertidos e muitas vezes esse é o motivo de termos começado a ler tanto. Fazer um personagem assim é o jeito mais barato e preguiçoso de (tentar) fazer com que o leitor se identifique com a história. Ou seja, lazy writing.

Não estou dizendo que é um crime criar um personagem principal tímido ou quieto que goste de ler; o problema é criar um personagem definido apenas por essas características, sem ter, portanto, profundidade alguma. Personagens assim são portas de entrada para o reino Mary Sue, e você obviamente não quer isso na sua história, certo? Certo.

Essa predisposição que temos antes de iniciar qualquer livro (e também durante a leitura) faz com que perdoemos atos cometidos pelos mocinhos quando na verdade jamais o faríamos se eles tivessem sido feitos pelos "caras maus". Sim, fulano pode ter feito algo horrível, mas ele é o protagonista, Cicrano foi um babaca, mas ele está do "lado do bem", Beltrano pisou na bola, mas ele é o melhor amigo do personagem principal... E assim vamos ignorando os próprios personagens e valorizando apenas o papel deles na história.

Evitar que isso aconteça é bem simples: é só se esquecer dos papéis que os personagens ocupam e julgá-los por eles mesmo. Para escrever, é claro, a coisa se torna um pouco mais complicada, mas é só parar de fazer personagens que se encaixem nesses papéis e começar a ajustar os papéis após ter construído o personagem. Se isso não for feito acabaremos com mais e mais personagens que são praticamente iguais por serem definidos apenas por esses papéis, com apenas uma ou outra característica escolhida apenas para tentar fazê-los parecer mais originais. Todos, é claro, sem profundidade alguma.

E como bem sabemos, poucas ou nenhuma história sobrevive com personagens ruins, mas estamos muito acostumados a ler (e gostar de) personagens ruins, então qualquer história que se diferencie, que realmente invista em construir personagens bons e bem desenvolvidos, acabará se destacando das demais. Bons personagens são, hoje em dia, a arma secreta de qualquer escritor - é uma pena que tão poucos saibam usá-la de fato.

colunas comportamento de escritores rants literários

Rants literários: o (mau) comportamento dos autores na era da internet

16:56neo


OBS: Os links desse post são todos para artigos em inglês. Infelizmente, não tem muito sobre o assunto em português.

OBS2: O rant de hoje não é bem um rant... É bem mais "leve" do que os outros no quesito de eu expressar minhas opiniões (embora elas ainda estejam aí), mas o tópico é bem importante para quem pertence ao meio literário.

OBS3: Post gigante. Oops.

Antigamente ser um escritor publicado era bem mais fácil. Você só tinha que escrever o livro, revisar algumas vezes, reescrever, achar uma editora interessada e então publicar sua obra. Depois de ver sua criação impressa e nas livrarias, o escritor publicado do século passado talvez fosse falar dela para os amigos, vizinhos e para família, e também no seu local de trabalho. Sim, fazer tudo isso dá um trabalho danado mesmo, mas era só. Não havia mais o que fazer. Hoje, feliz ou infelizmente, as coisas não são mais assim; o autor contemporâneo tem que, também, estar na internet.

"Estar na internet" não é bem a melhor escolha de palavras, para falar a verdade. Talvez "criar uma presença na internet" seja mais aplicável ao que acontece hoje em dia. Com muito mais escritores do que jamais tivemos em qualquer outro período da história, atualmente só se destaca aquele que der muita sorte ou que tenha muita determinação para conquistar seu espaço. E para conquistar o seu espaço, o autor precisar estar na internet o tempo todo, mas, mais uma vez feliz ou infelizmente, a internet também abriu espaço para um feedback maior. Com a existência de sites como o Skoob aqui no Brasil, e o GoodReads e o Leafmarks lá fora, qualquer autor pode dar uma espiada no que estão falando sobre seu livro a qualquer instante. Isso pode, claro, ser maravilhoso (imagina só a alegria de ver dezenas de resenhistas dando cinco estrelas para sua obra?), mas também pode ser um desastre. Afinal, nem todo livro vai ser amado, e livros vistos como ruins pela maior parte do público são lançados a todo momento. O que acontece, então, quando um autor mais sensível lê resenhas com críticas mais duras e impiedosas sobre o livro que ele demorou anos para escrever e publicar?

Barraco, minha gente, é o que acontece. Sério.

Até alguns meses atrás eu vivia na inocência de achar que o máximo de ruim que poderia acontecer na relação autores-leitores era a óbvia atitude passiva-agressiva de alguns escritores brasileiros ("ah, mas tem muita gente que só fala mal de nossos livros porque estão com inveja!"). Há alguns meses atrás, porém, finalmente decidi criar uma conta no GoodReads, e meu mundo virou, do nada, de cabeça para baixo.

Antes de eu explicar exatamente o porquê, deixe-me explicar uma concepção básica que existe (ou que deveria existir) entre autores e leitores: é uma péssima ideia o autor comentar em alguma resenha - ainda mais se for negativa - e é uma ideia ainda pior citar algum resenhista no Twitter ou em qualquer blog que o autor tenha, mesmo que seja para explicar que não, não foi isso que eu quis passar na minha obra. Por que essa concepção existe? Simples: o escritor, por mais desconhecido que seja, sempre terá mais gente para defendê-lo do que o resenhista. É como uma quebra de braço, apenas que o autor tem sua mão apoiada por dez vezes mais pessoas do que o resenhista, que pode acabar se ferrando bonito em casos assim. Há também outro aspecto: desde que não esteja atacando o autor como pessoa, o resenhista tem todo o direito de dizer o que achar da obra, mesmo que escolha usar uma linguagem mais rude e até mesmo cruel. Principalmente em sites como o GoodReads e o Skoob, que foram feitos justamente para se compartilhar opiniões sobre livros lidos.

Esclarecido isso, podemos passar para o primeiro caso que fez eu começar a entender como as coisas realmente são no mercado de livros: o caso da agente literária de Kiera Cass, autora de A Seleção.

A coisa toda começou quando uma resenha de A Seleção feita por Wendy Darling no GoodReads recebeu tantos likes que acabou no topo de resenhas da página do livro. A agente da autora, Elana Roth, decidiu falar sobre isso no Twitter. Saca só:

(Elana Roth, ER): Maldição, o GoodReads realmente precisa de um sistema melhor de filtração e de algorítimos sobre o modo como o site mostra as resenhas e as avaliações por padrão. Tão horrível.

(Kiera Cass, KC, em resposta a ER): Eu acho que é por likes e é fácil dar like em coisas cruéis. Tanto faz.

(ER, em resposta a KC): Aquela cadela no topo está realmente me irritando. Ela reclama antes de ler, lê pouco e então reclama de novo. Qual o caso dela?


(ER, ainda em resposta a KC): Eu acho que preciso ir e dar like em todas as resenhas positivas.
(ER, ainda em resposta a KC): Acabei de ir lá em todas as resenhas com 4 ou 5 estrelas e dei like nelas. 
(ER, ainda em resposta a KC): Nós deveríamos pedir ajuda a @KalebNation. Aparentemente não tenho mais clientes no GoodReads para pedir, porém. Estranho.
(KC, em resposta a ER): É, eu não sei o que está acontecendo. Mas estou pensando em dar like em algumas eu mesma. Talvez eu peça discretamente a alguns amigos para fazer o mesmo também. Nós temos grandes amigos.
(KC, em resposta a ER): É, minha lista de amigos no GoodReads é limitada. Hmm.
(KC): Em outras notícias: 6.000+ adicionamentos no GoodReads. Eu ADORO vocês, pessoal!
Sim, isso aconteceu. E sim, isso aconteceu no Twitter, uma rede social totalmente aberta, onde todo mundo pode ver Kiera Cass e sua agente Elana Roth planejarem manipular a ordem em que as resenhas no GoodReads são dispostas. Com o bônus de a Roth ainda ter chamado Wendy Darling de cadela.

A coisa explodiu a partir do momento em que Wendy Darling descobriu o que tinha acontecido e compartilhou no GoodReads o print acima, junto com outro, que mostrava pessoas anônimas deixando comentários não tão amigáveis na resenha dela. Ela, Wendy, escreveu um post no seu blog explicando o que tinha acontecido e como isso a afetou, mas para resumir: Wendy passou a ser atacada diariamente por anônimos e por supostos amigos da autora (que depois, assim como Elana Roth, pediu desculpas), entre estes uma autora independente já mal-afamada por ter atacado leitores* que publicou o que, segundo ela, seria o nome verdadeiro de Wendy Darling, sua foto, seu e-mail e informações sobre o trabalho de seu marido. Isso, obviamente, gerou mais uma rodada de "trolls" mandando mensagens não tão simpáticas para ela. Vocês podem imaginar o nível da coisa.

Isso tudo aconteceu no início de 2012 e, pelo que eu vi, foi o maior "escândalo" (decididamente não o único, como vocês vão ver depois) do ano no meio literário. Muita gente escreveu sobre isso na época (como você pode ver no segundo post feito por Wendy Darling). Enfim, foi o caos na Terra.

Mas não foi o começo, e muito menos o fim, das confusões entre autores e leitores em 2012. Aliás, muita coisa aconteceu bem no início do ano, que ficou conhecido como Os Primeiros Dias no GoodReads. Resumindo:

  • Dia 1: Kira escreveu uma pré-resenha negativa do livro Tempest, de Julie Cross. Dan Krokos, amigo de Julie Cross, foi na resenha reclamar. Depois, ele levou isso tudo para o Twitter, onde criou a hashtag #goodreadsslogan para criticar as pessoas (leitores, hm) do GoodReads que compartilhavam suas opiniões em resenhas, porque obviamente todas essas pessoas estariam na verdade atacando os autores. Vários outros autores se juntaram a ele. O único lado bom dessa história foi que Julie Cross agiu muito bem, não atacou ninguém e disse, super de boa, que a resenha de Kira não estava atacando-a de modo algum. Duh. (leia mais sobre esse caso aqui).

  • Dia 2: Flannery escreveu uma resenha do livro Froi of the Exiles, de Melina Marchetta, dando 3 estrelas para a obra (não foi nem uma estrela, gente, foram três). Danielle Weiller (outra autora) comentou na resenha dizendo que a resenha estava "tirando coisas do contexto" e que o fato de Flannery ter dado 3 estrelas quando sua resenha (segundo Weiller) indicava que ela queria dar 1 era cruel. Uh. (Depois de um tempo Weiller deletou os comentários na resenha de Flannery, mas você pode ler a partir da mensagem 48 lá na resenha para ter uma ideia de como a coisa foi).

  • Dia 3: Steph Sinclair escreveu uma resenha do livro Carrier of the Mark de Leigh Fallon e depois de algum tempo recebeu um e-mail escrito por Fallon para outra pessoa que não Sinclair onde a autora a chamava de vaca e cadela, e ainda pedia aos seus amigos para darem um yes nas resenhas positivas de seu livro no Amazon. Fallon acabou pedindo desculpas e disse que tinha mandado aquele e-mail para dois amigos, mas todo mundo ficou meio desconfiado porque você obviamente precisa de mais de dois amigos para fazer as resenhas positivas subirem no Amazon e/ou GoodReads. Well. (leia mais sobre esse caso aqui).

  • Dia 4: Sophie escreveu uma resenha do livro Beautiful Disaster de Jamie McGuire. Fãs do livro a atacaram nos comentários. McGuire acaba então escrevendo um post em seu blog sobre isso, para depois apagar. McGuire vai também ao Twitter. Lembra da quebra de braço? Bem isso.

*A autora independente e mal-afamada que vazou as informações pessoais de Wendy Darling é Melissa Douthit, que acabou banida do GoodReads por criar 27 contas fantasmas para assediar resenhistas e dar like em resenhas positivas dos livros delas (e de seus amigos, provavelmente). Sweet.

Não, isso não foi tudo o que aconteceu em 2012. Muito mais aconteceu, na verdade. Mas chega de falar do passado; vamos falar de casos recentes, certo? Certo. Dois aconteceram bem recentemente.

Primeiro, o mais chocante. Em 26 de setembro, Paige Rolland publicou uma resenha das primeiras páginas de The World Rose, de Richard Brittain. Brittain já era famoso no Wattpad por ser um, hm, babaca. Vale mencionar que The World Rose foi publicado de modo independente. Enfim, dias após Rolland ter publicado sua resenha, ela foi atacada por Brittain (que mora em Londres) em seu local de trabalho (na Escócia!) com uma garrafa de vinho na cabeça, por trás. Ela foi hospitalizada, mas já prestou queixa e aparentemente Brittain vai acabar internado por problemas mentais.

Segundo, o que repercutiu mais. Kathleen Hale, autora de No one else can have you teve um artigo publicado no The Guardian onde ela relatou como perseguiu uma resenhista que deu apenas uma estrela para seu livro. No artigo, Hale conta como literalmente ficou de olho nas redes sociais de Blythe Harris após ter visto a resenha dela, como chegou a pedir o endereço de Harris a um blog que estava organizando um book tour de seu livro dizendo que ia lhe mandar um presente, como foi até a casa de Harris, como desistiu de bater na porta dela, como descobriu que Blythe Harris não é nome verdadeiro da mulher que escreveu a resenha de seu livro e como ligou para o trabalho dela para tentar conseguir mais informações. Hale meio que tenta justificar ter perseguido Blythe Harris com o fato de que Blythe Harris não existe, como se usar um nome diferente - e até uma idade diferente - para resenhar livros fosse um crime. Mas, surpresa!, não é.

(Se fosse eu seria presa, oops. Nunca cheguei a dizer ter uma idade diferente da minha real, embora já tenha omitido-a para ser levada a sério - comecei a participar de discussões em fóruns sobre livros com 13 anos quando todo mundo já estava ou terminando o ensino médio ou na faculdade ou trabalhando, então né -, mas acho que nunca cheguei a usar meu nome verdadeiro, e já mudei de nome várias e várias vezes.)

O artigo de Hale rendeu muito, e ainda está rendendo. Rendeu uma hashtag no twitter (#HaleNo), um blog blackout (vários blogs grandes estão suspendendo suas atividades por uma/duas semanas em protesto), e vários posts, cartas e artigos em resposta ao publicado pelo The Guardian (exemplo). Em resumo, todo mundo está revoltado com o fato de que um jornal como o The Guardian achou que seria uma boa ideia publicar um artigo sobre uma autora stalker. E, para piorar, com o fato de que tem gente apoiando-a.

Há outros casos, é claro. Muitos, acontecendo quase o tempo todo. Alguns, porém, saem da esfera de relação entre autor-leitor e vão além, para a personalidade e os feitos dos autores longe de seus livros. Como o fato de que os filhos de Marion Zimmer Bradley, autora consagrada de As Brumas de Avalon que faleceu em 1999, disseram recentemente que a mãe abusava deles. Não foram poucos os posts sobre essa revelação (sério), que foi um choque. MZB é ainda hoje muito aclamada, muito famosa, e seus livros são adorados por muitos. Mas, depois dessa, saíram de modo permanente da minha lista de leitura.

Outro cujos livros estão praticamente excluídos da minha lista de leitura é Orson Scott Card, autor de Ender's Game, filme que eu adorei e que me fez ficar saltitante de vontade de ler o livro no qual foi baseado. Mas Card é um homofóbico que vem lutando contra os direitos dos homossexuais há anos. E, feliz ou infelizmente, eu não conseguiria ler Ender's Game, cuja mensagem, pelo que eu vi no filme, é justamente a de aceitar e entender o diferente, sabendo que o autor faz tudo menos isso. Acaba sendo hipocrisia demais para mim.

Separar o autor da obra é muito difícil, tanto em casos como o de Kathleen Hale, Kiera Cass/Elana Roth e Leigh Fallon quanto em casos como o de Orson Scott Card e Marion Zimmer Bradley. Eu, pessoalmente, não consigo. Talvez parte disso se deva ao fato de que eu sou (ou quero ser) escritora; jamais conseguiria me separar da histórias que quero escrever e, portanto, não consigo e nunca conseguirei abrir Ender's Game e ler uma história magnífica sobre respeitar o diferente (com toda a parte legal de ser um livro de ficção científica) sabendo que tudo ali não passa de uma mensagem oca de um escritor hipócrita. Não sou apenas assim com livros; se descubro que certa banda é feita de babacas, não consigo mais ouvir as músicas, por exemplo. Estou até mesmo considerando largar de vez Shingeki no Kyojin, um anime que eu adoro, porque o autor disse que um dos personagens, Dot Pixis, foi inspirado em um general japonês que lutou em duas guerras (uma contra a Rússia, outra contra a China) para manter a Coreia sob domínio do Japão e que ele o respeitava pela vida frugal que esse general levava. O problema é que, sob o nome desse general, garotas coreanas foram estupradas e homens coreanos foram feitos de escudos humanos e objetos de tortura. Quando fãs coreanos do anime reclamaram sobre isso, ele disse que o que o Japão fez com a Coreia não pode ser comparado com o Holocausto porque a vida dos coreanos (e dos chineses) melhorou "graças" ao Japão, mesmo que essa "melhora" tenha significado a morte de centenas (ou milhares) e tenha abrigado uma tentativa de apagar a cultura coreana. Ou seja, o cara é um babaca. E por mais que SnK seja um dos melhores animes que eu já vi (e um dos mangás que eu mais quero ler), não dá pra mim. Não rola mesmo.

Sei que a maior parte das pessoas que me seguem aqui [no tumblr] é feita de escritores, então achei que esse seria um bom tópico para se discutir. Vocês conseguem separar o autor da obra? Leriam algum dos livros aqui citados mesmo sabendo que o/a autor/a fez o que fez? Ou continuariam lendo as histórias, isolando-as das pessoas que a escreveram? E como agiriam caso algum livro seu recebesse essas resenhas negativas?

É algo que se vale a pena pensar.

Formulário de contato